Imagem: Reprodução |
A invasão russa à Ucrânia chegou ao seu oitavo dia na quinta-feira, (3), com o número assustador de um milhão de refugiados, segundo informações da Agência da ONU para Refugiados (Acnur).
O desespero expôs o racismo e a xenofobia na Europa, onde pessoas negras têm enfrentado barreiras impostas tanto pelas instituições governamentais de assistência quanto pela mídia.
Com a urgência e rapidez das notícias veiculadas nas redes sociais, principalmente no Twitter, residentes do país europeu e até mesmo autoridades usam o microblog para se manifestar sobre o conflito. É por lá que muitos refugiados relatam episódios de segregação racial ou xenofobia no momento de tentar deixar o país.
Um homem identificado como Alexander Somto publicou um vídeo, segundo seu próprio relato, gravado na fronteira da Ucrânia com a Polônia. Nas imagens, viaturas bloqueiam uma estrada com policiais armados e jovens aparecem nos vídeos gritando e avisando que são apenas estudantes.
“Veja como eles estão ameaçando atirar em nós! Estamos atualmente na fronteira Ucrânia-Polônia. Sua polícia e Exército se recusaram a deixar os africanos atravessarem, eles só permitem ucranianos. Alguns dormiram aqui por 2 dias sob este frio escaldante”, diz Alexander Somto na publicação.
Watch how they are threatening to shoot us!
— Alexander Somto (Nze) Orah (@nzekiev) February 27, 2022
We are currently at the Ukraine -Poland border.
Their Police and Army refused to let Africans cross they only allow Ukrainian.
Some have slept here for 2 days under this scorching cold weather, while many have gone back to Lviv. pic.twitter.com/47YG4gxFC4
Outro relato foi feito em entrevista à CNN nessa quarta-feira, 2, também repercutiu nas redes sociais. Nele, uma aluna africana de Medicina afirmou que ela e outros estrangeiros receberam ordens para sair de um carro público, em um posto de controle entre a Ucrânia e a fronteira da Polônia, permanecendo no transporte apenas cidadãos ucranianos a bordo. “Eles disseram que se você é negro, você deve andar”, afirmou.
'They said if you're black, you should walk'
— BBC News Africa (@BBCAfrica) March 1, 2022
Nigerian student Jessica has kept in touch with us about her journey out of Ukraine. She is among the hundreds of thousands of people fleeing the country, and one of many #AfricansinUkraine who have described facing racism at borders. pic.twitter.com/OTTx6wxVDY
Na mídia
Os comentários de alguns jornalistas, ao relatarem o conflito, exibiu uma “guerra de narrativas” que se criou sobre pessoas brancas e não-brancas. Um dos exemplos que mais circularam nas redes sociais foi a fala de Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News. Na última sexta-feira, 25, o jornalista disse que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia não era esperada por se tratarem de países europeus.
“Esse não é um lugar, com todo respeito, como Iraque, ou Afeganistão, que tem visto conflitos por décadas. Essa é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia. Preciso escolher essas palavras com cuidado, também. É uma cidade que você não espera que isso aconteça”, comenta o jornalista ao vivo. Horas após a transmissão, D’Agata pediu desculpas em suas redes sociais.
"This isn't a place, with all due respect, like Iraq or Afghanistan that has seen conflict raging for decades. This is a relatively civilized, relatively European [...] city where you wouldn't expect that, or hope that it's going to happen."#Ukraine #UkraineUnderAttack #Russia pic.twitter.com/roidFWc8XD
— In Context (@incontextmedia) February 26, 2022
Também no dia 26, o jornal The Telegraph publicou um artigo do jornalista Daniel Hannan, no qual ele escreveu, em um trecho, que “eles se parecem tanto com a gente”. “Isso é o que faz ser tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Sua população assiste Netflix e tem contas no Instagram, votam em eleições livres e leem jornais não censurados. A guerra não é mais uma coisa que atinge populações empobrecidas e remotas. Pode acontecer com qualquer um”, afirmou.
🗣️ "They seem so like us. That is what makes it so shocking. War is no longer something visited upon impoverished and remote populations. It can happen to anyone" | Writes Daniel Hannan https://t.co/FwHREn1xzR
— The Telegraph (@Telegraph) February 26, 2022
Discriminação
O mestre em História e estudioso de relações étnico-raciais Juarez Silva Jr. indica haver vários pontos a serem observados quando se fala de racismo. O primeiro é o de “marca”, quando o preconceito e discriminação acontece a partir da aparência física, o fenótipo, que identifica facilmente o discriminado como “diferente” e com associação negativa histórica e cultural, como é o caso do racismo clássico nas Américas.
O segundo é a origem, quando não há muita “marca” fenotípica, mas há outros elementos especialmente culturais, como língua, religião, tradições culturais, que fazem a identificação do “diferente”. Em ambos os casos, segundo Juarez Silva Jr., há uma associação do diferente como “estrangeiro, intruso ou invasor”. Nesse caso, a discriminação é mais nítida e chamada de xenofobia.
“Os brasileiros, por exemplo, estão mais acostumados com o racismo de marca, por isso muitos brancos ficam surpresos ao serem às vezes discriminados em países estrangeiros, porque não é comum por aqui, mas muito comum na Europa e América do Norte, por exemplo”, exemplifica ele.
“A questão étnica também é fator preponderante nos conflitos mundo afora. Grupos étnicos são grupos de cultura mais do que de fenótipo. No caso da região do conflito, o grupo preponderante é das línguas eslavas, ou seja, tem grande parte da história e cultura compartilhada. Daí termos tantas guerras na Europa e Eurásia. O interessante é que normalmente o público externo enxerga essas diferenças nesses contextos, mas quando se trata de outros continentes com África, por exemplo, enxergam todos como uma ‘coisa só’ e até falam em ‘irmãos matando irmãos’, como se não fosse o mesmo que sempre aconteceu nas ‘guerras brancas’, guerras étnicas”, questiona ele.
O mestre em História e estudioso de relações étnico-raciais Juarez Silva Jr. - Foto: Reprodução
Direito à igualdade
A União Africana, organização que reúne os 55 países do continente, condenou publicamente o tratamento que vem sendo dispensado aos cidadãos de países africanos que estão na Ucrânia. “Relatos de que africanos são selecionados para tratamento dissimilar inaceitável são chocantemente racistas e uma violação da lei internacional”, diz o comunicado assinado por Macky Sall, presidente da entidade, também presidente do Senegal, e por Moussa Faki Mahamat, presidente da Comissão da União Africana e ex-primeiro-ministro do Chade.