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sábado, 4 de outubro de 2025

Intoxicação por metanol: por dentro do mercado clandestino de lacres falsos, tampas e garrafas de bebidas alcoólicas

Imagem: reprodução

Rótulos e tampas de bebidas famosas, selos apresentados como se fossem da Receita Federal e garrafas de marcas de gin, vodka e whisky circulam livremente em grupos de Facebook, abertos ou fechados, dedicados à compra e venda desses itens, segundo apurou a BBC News Brasil.

Os anúncios prometem entrega para "todo o Brasil" e venda em grande escala, de mihares de produtos. Entre os interessados estão perfis com nomes e logotipos de adegas de diferentes estados do país. Em apenas um desses grupos há mais de 10 mil participantes, além de outros menores e com acesso restrito.

Um vendedor com DDD do Rio de Janeiro, por exemplo, oferece garrafas de um whisky de marca internacional por R$ 5 a R$ 10 a unidade, a depender da quantidade comprada. O valor é praticamente dez vezes o que se conseguiria em uma empresa de reciclagem, por exemplo.

Em conversa por WhatsApp com a BBC, um vendedor de selos diz que o produto sai a R$ 1,30 por selo, e ofereceu um pacote com 1 mil unidades. Ele não confirmou a origem do material e não quis fornecer mais detalhes.

Nos últimos dias, autoridades brasileiras advertiram sobre um número atípico de casos de pessoas intoxicadas por metanol devido ao consumo de bebidas alcoólicas contaminadas com a substância — que pode provocar mortes e danos irreversíveis, como cegueira.

Existe a suspeita de que bebidas possam ter sido adulteradas com metanol, já que muitos dos casos relatados são de pessoas que beberam em bares. As autoridades também trabalham com a hipótese de algum problema de contaminação no envase de garrafas.

Em um dos grupos vistos pela BBC, um perfil de uma adega no interior do Mato Grosso do Sul diz procurar lacres e tampas de uma famosa marca de whisky — e, na mesma publicação, aparecem outros compradores interessados.

Também são anunciadas garrafas descritas como "zero", além de caixas, tampas e adesivos. Os vendedores chegam a publicar vídeos para demonstrar a suposta qualidade dos produtos e oferecem envio pelos Correios.

Na prática, esses grupos funcionam como uma feira livre virtual: vendedores e compradores expõem seus números de WhatsApp, com DDDs de vários estados.

Em alguns casos, há moderação e é preciso pedir autorização para entrar. Em outros, o acesso é totalmente aberto.

A venda de garrafas, em si, não é um crime, mas diversos especialistas alertam que é uma prática comum no mercado paralelo de falsificação de bebidas alcoólicas.

Vendedores contatados pela reportagem dizem não saber qual é o destino das garrafas. Entre os anunciantes há também empresas de reciclagem e até pessoas que se apresentam como colecionadores.

A BBC News Brasil procurou a Meta, responsável pelo Facebook, mas ainda não houve um posicionamento sobre o caso.


Perfil ligado a uma adega anuncia compra de lacres de whisky no Facebook
- Imagem: reprodução

'Quem vende sabe que o objetivo é o descaminho'

Um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apontou que o mercado ilegal das bebidas alcoólicas movimentou R$ 56,9 bilhões no Brasil, aumento de 224% em relação a 2017.

O modus operandi da falsificação passa pela reutilização de garrafas de marcas legítimas, segundo a entidade. De acordo com o Fórum, é comum na falsificação a prática do refil, com a reutilização dos vasilhames para envasamento das bebidas adulteradas. Só em 2023 foram apreendidas 1,3 milhão de garrafas de bebidas.

Uma ação recente da Polícia Civil em Mogi das Cruzes, região metropolitana de São Paulo, encontrou um depósito em que estavam sendo higienizadas ao menos 20 mil garrafas.

Para Lucien Belmonte, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Vidro (Abividro), a falta de fiscalização faz com que o crime compense nesse setor.

Ele diz que o correto seria que estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas destinem as garrafas para contêineres de reciclagem ou contratem um serviço de coleta.

"Já vi garrafas com tampa sendo vendidas a R$ 450. Obviamente isso não é para fazer abajur, mas para encaminhar para falsificação", diz. "Quem vende sabe que o objetivo é o descaminho, que é para esquema de falsificação."

Ele destacou um projeto de lei, colocado no regime de urgência pela Câmara dos Deputados, que classifica como crime hediondo a adulteração de alimentos, incluindo bebidas, e avalia que esse comércio das garrafas com o objetivo de falsificação também deveria ser punido.

"Hoje não há um crime específico. É preciso ter uma interpretação alargada da lei para tipificar."

Como é o controle das bebidas destiladas?

O controle de destilados importados, como gin ou vodka, é feito pela utilização de selos, que são impressos pela Casa da Moeda e aplicados nas tampas das garrafas. O selo autêntico tem uma holografia que mostra as letras R, F ou B.

Segundo a Receita Federal, o selo está relacionado a aspectos tributários, sem preocupação específica com o conteúdo das garrafas ou composição do produto.

Já a autorização de entrada no país de bebidas importadas cabe ao Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), que é responsável por verificar e autorizar previamente a importação desses produtos e avaliar identidade, qualidade e segurança.

Entidades reclamam da suspensão de um sistema de rastreamento de bebidas, o Sicobe, que tinha sido implementado em 2008, mas foi desativado em 2016 sob alegação de altos custos de manutenção (cerca de R$ 1,4 bilhão ao ano). Houve uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) no ano passado para religá-lo, mas o caso foi judicializado e está pendente de uma decisão no Supremo Tribunal Federal.

Um estudo feito em 2023 e assinado por dois economistas da Fia Consultoria explica como funcionava o Sicobe: sensores instalados na linha de produção registravam a quantidade de bebidas engarrafadas em lata ou em garrafas. Os dados eram então encaminhados à Receita Federal, sem depender de notificações voluntárias das produtoras de bebidas.

"O sistema reduz fraudes e evita subnotificação da produção", diz o estudo.

Esse sistema, no entanto, fazia o monitoramento de cervejas e refrigerantes, não dos destilados, segundo nota divulgada pela Receita Federal.

Ainda assim, especialistas avaliam que algum tipo de rastreamento precisa ocorrer para coibir a falsificação, mesmo que por meio de outro sistema.

"Um comerciante mal-intencionado pode comprar a bebida original, vendê-la e depois, ao invés de mandar o vasilhame pra reciclagem, vender pra esse mercado paralelo, por um valor mais caro", diz Sérgio Pereira da Silva, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Combate à Falsificação.

SIlva avalia que é necessário que haja algum tipo de rastreabilidade dos produtos e que só os selos não dão conta do problema.

"Hoje você encontra facilmente selos falsificados pra comprar. A mesma gráfica que falsifica o rótulo também falsifica o selo."

Para o delegado aposentado da Polícia Federal e consultor em compliance e segurança, Jorge Pontes, falta controle da produção de bebida no Brasil.

"Antes o controle era muito melhor. Tem que ter algum tipo de controle estatal. Não dá pra deixar só na mão de particulares, pois cria-se um ambiente propício para a criminalidade", diz.

"Hoje o chamado 'follow the product' [siga o produto] é tão importante quanto o 'follow the money' [siga o dinheiro] em investigações. O poder público precisa saber o que está sendo produzido, quanto está sendo produzido."

O pesquisador-sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Nívio Nascimento, que participou de um estudo da entidade que cita o contrabando de bebidas alcoólicas, ressalta que esse tipo de crime sempre existiu, mas a novidade percebida nos últimos anos é a inserção e o interesse cada vez maior do crime organizado.

"Muitas vezes associamos facções ao comércio de cocaína, maconha e outros ilícitos. Mas hoje o cenário é de diversificar a atuação. Houve uma infiltração robusta do crime organizado em diversos setores da economia, como o da bebida."

Ainda não há evidências, vale lembrar, de que os casos de contaminação em São Paulo estejam ligados a facções.

"Nesse momento há pouca informação disponível para concluir se há participação do PCC. É preciso esperar investigações para entender o que aconteceu", disse.

Fonte: BBC Brasil


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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Como PCC usa a Faria Lima para lucrar bilhões, segundo investigações da Receita e a PF

Foto de dinheiro apreendido durante megaoperação da Polícia Federal e
outros órgãos - Imagem: reprodução

A Polícia Federal, a Receita Federal e órgãos como o Ministério Público de São Paulo (MPSP) deflagraram na quinta-feira (28/8) três operações contra um esquema supostamente utilizado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).

Segundo as autoridades, o esquema utilizava fundos de investimentos e empresas financeiras que operam na avenida Faria Lima (principal centro financeiro de São Paulo) para gerar, lavar, ocultar e blindar recursos da atuação da facção no tráfico de drogas e no setor de combustíveis.

De acordo com reportagem do portal G1, ao menos 42 endereços alvos da megaoperação ficam na Faria Lima.

O PCC é considerado uma das maiores organizações criminosas do Brasil com atuação tanto no tráfico de drogas doméstico e internacional quanto no setor de combustíveis.

Ao todo, a estimativa da PF é de que o esquema investigado tenha movimentado pelo menos R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024.

Foram expedidos 14 mandados de prisão, mas até o início da tarde, apenas seis pessoas haviam sido presas.

Em suas redes sociais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que a operação foi a "maior resposta do Estado brasileiro ao crime organizado de nossa história".

O ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, também disse que as três operações, em conjunto, seriam a maior investida das autoridades brasileiras contra o crime organizado até hoje.

O governo federal realizou uma entrevista coletiva nesta quinta sobre a operação. Nela, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que a ação foi "exemplar" pois conseguiu "chegar na cobertura do sistema, no andar de cima do sistema".

Haddad também afirmou que o monitoramento de fintechs (empresas de tecnologia que oferecem serviços financeiros) será ampliado.

"As fintechs, a partir de amanhã, terão de cumprir rigorosamente as mesmas obrigações que os grandes bancos. Porque com isso aumenta o potencial de fiscalização da Receita", afirmou à imprensa na saída da entrevista coletiva.

Para a subsecretária da Receita Federal, Andrea Costa Chaves, as investigações revelaram o grau de infiltração do crime organizado na sociedade brasileira.

"Percebemos uma invasão do crime organizado na economia real e no mercado financeiro", disse Chaves durante a entrevista coletiva.

As três operações se chamam Carbono Oculto, Quasar e Tank.

A primeira foi realizada pelo MPSP em parceria com a PF e com a Receita Federal. As duas últimas foram realizadas pela PF e pela Receita Federal.

De acordo com as autoridades, o principal esquema, investigado pela Operação Carbono Oculto, funcionava em quatro etapas.

Na primeira, importadoras de combustíveis financiadas com recursos da facção compravam remessas de combustíveis no exterior.

O produto então era distribuído a redes de postos controladas pelo PCC em diversos Estados. Estes postos, por sua vez, sonegavam impostos da venda desses produtos ao consumidor final.

A Receita Federal estima que o esquema tenha gerado uma perda de receita de aproximadamente R$ 8,67 bilhões.

De acordo com o MPSP, o esquema também envolvia a adulteração de combustíveis vendidos ao consumidor final, especialmente gasolina.

Na segunda fase, a facção também usava os postos e outros estabelecimentos comerciais para lavar dinheiro do tráfico de drogas. Também haveria indícios de que a facção usava lojas de conveniência e padarias para "esquentar" o dinheiro ilegal.

O PCC teria usado uma rede de aproximadamente mil postos de gasolina distribuídos em 10 Estados: São Paulo, Bahia, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Maranhão, Piauí, Rio de Janeiro e Tocantins.

De acordo com as investigações, o papel dos postos e de outros estabelecimentos vinculados ao esquema era receber dinheiro em espécie ou por meio de máquinas

O recebimento de dinheiro em espécie, segundo os investigadores, dificulta o rastreio da origem exata dos recursos.

A terceira fase era a da ocultação dos recursos ilícitos gerados pela facção. É nesta fase que entraram em cena, segundo a PF, fintechs.

Uma delas, o BK Bank, é apontada em um documento da investigação ao qual a BBC News Brasil teve acesso como um "buraco negro" financeiro, uma vez que a instituição receberia recursos dos estabelecimentos controlados pelo PCC e os misturaria com dinheiro de outros clientes, tornando o rastreio mais difícil.

Essa "mistura" se daria por meio de um mecanismo chamado "conta bolsão", em que a fintech deposita todos os recursos de seus clientes numa única conta.

A BBC News Brasil enviou questionamentos à BK Bank, mas não recebeu resposta.

De acordo com o jornal Valor Econômico, a empresa divulgou uma nota sobre o assunto.

"A instituição de pagamentos é devidamente autorizada, regulada e fiscalizada pelo Banco Central do Brasil e conduz todas as suas atividades com total transparência, observando rigorosos padrões de compliance", diz a nota.

"A fintech era usada ainda para efetuar pagamentos de colaboradores e de gastos e investimentos pessoais dos principais operadores do esquema", diz uma nota da Receita Federal sobre a operação.


Viatura da Polícia Federal em frente a um prédio localizado na Avenida Faria Lima
durante operação contra a PCC - Imagem: reprodução

Blindagem

A suposta participação de fundos de investimento sediados nas imediações da Faria Lima faz parte, segundo as investigações, da quarta etapa do esquema: a blindagem do patrimônio do PCC contra eventuais investigações.

Um dos alvos da operação foi a gestora de fundos Reag Investimentos.

Segundo o site da empresa, ela é responsável pela gestão de um patrimônio de R$ 299 bilhões.

Em nota, a Reag Investimentos disse estar colaborando com as investigações.

"Trata-se de procedimento investigativo em curso. As Companhias esclarecem que estão colaborando integralmente com as autoridades competentes, fornecendo as informações e documentos solicitados, e permanecerão à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais que se fizerem necessários", afirmou a empresa.

A blindagem patrimonial ocorreria por meio do investimento em fundos oficialmente controlados por gestoras situadas no coração financeiro de São Paulo.

De acordo com os investigadores, a facção teria usado 40 fundos de investimentos com um patrimônio de R$ 30 bilhões ligados ao esquema.

Mas esses fundos seriam controlados, na verdade, pela organização criminosa.

Eles receberiam aportes de dinheiro "lavado" para fazer aquisição de bens e empresas usados pelo esquema.

A Receita Federal diz ter identificado que os fundos controlados pelo PCC foram responsáveis pela compra de 1,6 mil caminhões para transporte de combustíveis, um terminal portuário, quatro usinas de álcool, 100 imóveis — entre eles, seis fazendas no interior de São Paulo — e uma mansão em Trancoso, no litoral da Bahia.

Ainda de acordo com a Receita Federal, os administradores dos fundos estariam cientes da vinculação com o PCC e teriam contribuído para o esquema.

Após a publicação original desta reportagem, a Reag enviou esclarecimentos adicionais à BBC News Brasil.

"Sobre os fatos objeto de apuração, [a Reag] esclarece que diversos Fundos de Investimentos mencionados na Operação nunca estiveram sob sua administração ou gestão."

"Quanto aos Fundos de Investimento apurados em que a empresa atuou como prestadora de serviço, informa que agiu de forma regular e diligente. Cumpre registrar que tais fundos foram, há meses, objeto de renúncia ou liquidação."

"Reforça, ainda, que não possui nem nunca possuiu qualquer envolvimento com as atividades econômicas ou empresariais conduzidas por esses clientes."

Brechas e fake news

Andrea Costa Chaves, da Receita Federal, disse que o esquema usado pelo PCC usou uma brecha legal sobre o funcionamento de fintechs que foi alvo de críticas da oposição no início do ano, durante a chamada "crise do Pix".

Uma série de vídeos, entre eles um divulgado pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), levantaram suspeitas sobre uma instrução normativa da Receita que aumentava a fiscalização de operações realizadas por fintechs.

Nesses vídeos, uma das críticas era a de que a mudança nas regras teria o objetivo de aumentar o monitoramento da Receita sobre os gastos de cidadãos e aumentar a arrecadação.

O governo, na época, tentou se defender afirmando que o objetivo era combater crimes financeiros, mas acabou recuado em meio à pressão da opinião pública e revogou as medidas.

Para Andrea Costa Chaves, a megaoperação desta quinta-feira mostra que é preciso aumentar o controle sobre as movimentações destas empresas.

"O aprimoramento dela [da instrução normativa] incluía as fintechs. Ela foi alvo de muitas fake news e a consequência disso, com essa operação, fica claro. A gente acaba perdendo poder de fazer análise de risco para identificar com mais rapidez e eficiência esquemas como esse", disse.

Chaves afirmou também que, apesar de parte da megaoperação se concentrar em endereços na avenida Faria Lima, a maior parte dos fundos estabelecidos no mercado financeiro brasileiro seriam "legítimos".

"Na Faria Lima, tem fundos legítimos que não têm nenhuma ligação com isso. É o normal e é o que se espera. Mas dentro deste arcabouço, identificamos 40 fundos que, sim, estavam ligados e eram utilizados para a blindagem patrimonial do crime organizado", afirmou a subsecretária da Receita Federal.

Fonte: BBC Brasil


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

'Aristóteles não é simplesmente o filósofo mais importante, mas o ser humano mais importante que já viveu'

O filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) foi um polímata cuja obra é considerado
um pilar fundamental da cultura ocidental - Imagem: reprodução

"Aristóteles não é simplesmente o filósofo antigo mais importante, nem simplesmente o filósofo mais importante de todos os tempos; Aristóteles é o ser humano mais importante que já viveu".

Essa afirmação foi feita pelo filósofo britânico John Sellars em um artigo na revista acadêmica Antigone pouco antes da publicação de seu livro, Aristóteles: Entendendo o Maior Filósofo do Mundo.

O título do livro, reflete a motivação de Sellars para escrever o livro: sua experiência como estudante de Filosofia mergulhando fundo na obra do pensador grego.

"Quando comecei, sabia muito bem que Aristóteles era uma figura importante, mas achei isso muito intimidador. Toda vez que eu tentava mergulhar em suas obras, quase imediatamente me perdia."

No entanto, ele perseverou e aprendeu que "você precisa saber lê-lo".

Como? "Lentamente", diz.

Seu livro é uma amostra que ele espera que incentive mais gente a conhecer os escritos do filósofo dos séculos IV e III a.C., sirva como um guia nesta jornada e nos ajude a descobrir como ele é brilhante.

E ele é, mas "o maior do mundo", "o maior de todos os tempos", "o ser humano mais importante"?...

"Esse é o meu ponto de vista, e sei que existem outros acadêmicos que o compartilhariam, nem todos, é claro, mas eu não sou o único que pensa assim", disse ele à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Sellars é um respeitado especialista em conhecimento, professor de Filosofia na Universidade Royal Holloway, em Londres, e autor de aclamadas palestras sobre estoicismo e epicurismo.

Mesmo assim, pedimos que ele nos convencesse da importância de Aristóteles.

Mas primeiro...

Relembrando brevemente

Aristóteles faz parte da tríade dourada da Filosofia clássica completada por Sócrates e Platão.

Ele era originário do norte da Grécia e, aos 18 anos, foi estudar na Academia de Platão em Atenas, onde, por duas décadas, foi aluno e depois colega do grande pensador.

Com o tempo, embora sempre tenha reconhecido o quanto devia ao professor, ele se distanciou de suas ideias e desenvolveu suas próprias opiniões.


"Platão é meu amigo, mas o mais amigo é a verdade", disse Aristóteles (em toga azul),
referindo-se ao seu mestre (em toga vermelha) - Imagem: reprodução

Após a morte de Platão, Aristóteles deixou Atenas e, depois de um tempo na Ásia Menor, mudou-se para a ilha grega de Lesbos, onde se dedicou ao estudo do mundo natural.

Anos depois, o rei Filipe da Macedônia o convidou de volta ao norte da Grécia para ensinar seu filho Alexandre, que mais tarde se tornaria conhecido como Alexandre, o Grande.

Quando Filipe foi assassinado enquanto Alexandre estava em sua grande campanha no Oriente Médio e na Índia, Aristóteles temeu por sua segurança e retornou a Atenas, onde fundou sua própria escola, o Liceu, aos 50 anos.

Ele morreu aos 62 anos, deixando para trás uma vasta biblioteca, incluindo seus próprios numerosos escritos.

De acordo com a Enciclopédia Britânica, as obras sobreviventes de Aristóteles, embora representem provavelmente apenas um quinto de sua produção total, somam cerca de um milhão de palavras.

Embora Sellars admita que dizer que Aristóteles é a pessoa mais importante de todas seja uma afirmação aparentemente "exagerada, tão grandiloquente que parece uma hipérbole afetada", ele tem argumentos para isso.

"Acho que ele é o maior em termos da escala de sua influência e do impacto que teve."

"Ele contribuiu tanto para tantas coisas que ainda são relevantes hoje em dia que nem percebemos que elas estão conectadas a ele."

Com água até os joelhos

Aristóteles não era apenas o protótipo de um filósofo sentado em uma academia ou palácio na Grécia Antiga, meditando com o olhar perdido à distância.

Como seu objeto de estudo era o mundo ao seu redor, ele também costumava fazer trabalho de campo, diz Sellars.


Aristóteles retratado no século XIII - imagem: reprodução

Quando ele partia para estudar a vida natural, ele "ia às praias e, com as águas até os joelhos, observava os animais, pegava insetos, peixes, caranguejos e polvos e depois os examinava".

"Até então, ninguém havia tentado estudar sistematicamente os seres vivos."

Assim, ele criou a disciplina de biologia.

Mas cuidado, isso não significa que suas conclusões estavam corretas. Na verdade, a maior parte do conhecimento que obteve nesse campo está obsoleto.

No entanto, o fato de ele ter sido provado errado em algumas observações não desvaloriza seu trabalho, porque no cerne de seu pensamento está que a evidência triunfa sobre a teoria.

"Toda teoria está aberta à refutação por meio de observações subsequentes, disse Aristóteles mais de uma vez", enfatiza Sellars.

O que também é excepcional é a maneira pela qual ele buscou o conhecimento, que "lançou as bases da ciência empírica".

"Refletindo sobre a natureza da ciência, ele criou um método para o pensamento científico, que foi outro avanço muito importante."

E enquanto "estava tentando entender como os seres vivos funcionavam, ele desenvolveu uma abordagem que depois aplicou a outros campos."

Outras águas

Por exemplo, Aristóteles adotou sua metodologia de conhecimento em seus estudos de política.

Para entender e escrever sobre isso, precisava de amostras, então "ele coletou cópias de todas as constituições que regiam as diferentes cidades do antigo mundo mediterrâneo", diz Sellars.

Isso permitiu que ele comparasse e analisasse as diferentes cidades e comunidades.

Assim como os animais, os diferentes tipos de governos poderiam ser classificados — monarquias, oligarquias, democracias — e, com base em informações históricas, ter uma ideia de quais floresceram.

Foi uma abordagem bem científica que marcou o início das ciências sociais.

"A política pode ser um assunto acalorado, e as pessoas têm opiniões fortes."

"A ideia de tentar dar um passo atrás e adotar essa abordagem mais científica, coletando informações antes de fazer um julgamento, é uma forma muito madura de se pensar sobre política que ainda não aprendemos totalmente", diz o autor..


Ao contrário da Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles realizava muitas palestras
abertas ao público em geral e gratuitas - Imagem: reprodução

Ele fez a mesma coisa quando explorou a literatura em sua obra poética.

"Para entender o drama grego, de uma forma muito científica, ele o desmontou e pensou em todos os diferentes elementos que contribuem para seu sucesso", Sellars explica.

"Ele analisou o enredo, os personagens, a encenação — tudo o que é importante."

"E, embora pareça muito óbvio agora, ele ressaltou que você precisa de um começo que dê ao público uma ideia de qual é a situação, depois a ação principal e, finalmente, uma resolução que não deixe pontas soltas, para que seja satisfatória para o público e eles possam sair com uma sensação de satisfação."

Assim, ele estabeleceu os elementos básicos de uma boa história, com uma análise que ainda é usada hoje e que também deu origem à crítica literária.

Como se isso não bastasse

Assim, resume Sellars, Aristóteles foi "a primeira pessoa a estudar sistematicamente a política e a pensar a literatura e a ciência dessa maneira, e ele inventou a lógica formal, o que é uma grande conquista por si só".

A lógica também?

"Ele foi o primeiro a estudar as estruturas do pensamento racional e, com isso, inventou a lógica formal e articulou claramente pela primeira vez os principais princípios lógicos, como a Lei do Meio Excluído: qualquer proposição só pode ser verdadeira ou falsa."

"Essa divisão binária é a ideia fundamental subjacente ao mundo digital."

Além disso, "Ética a Nicômaco, de Aristóteles, foi provavelmente o livro de ética mais influente de todos os tempos", diz Sellars.

Por quê?


O sistema filosófico e científico de Aristóteles se tornou a estrutura e o veículo
tanto da escolástica cristã quanto da Filosofia islâmica medieval - Imagem: reprodução

"Por causa da riqueza e complexidade da resposta que ele dá. Ele não simplifica. E ele reconhece todas as dificuldades reais de tentar viver uma vida humana."

"Ele também traz seu espírito científico para o assunto".

"Temos que pensar primeiro sobre o que é um ser humano e quais são suas capacidades e habilidades, e depois sobre o que significaria ser um bom ser humano que usasse essas capacidades e habilidades da melhor maneira possível."

Aristóteles acreditava que, além de crescer, se mover e se reproduzir, como outros seres vivos, nossa capacidade distinta é raciocinar: a grande maioria dos seres humanos adultos são pensantes... potencialmente.

"Para citar um exemplo que ele gostou, os olhos servem para ver; essa é a função deles. Se alguém tem olhos, mas nunca os abre, eles não seriam olhos no sentido mais pleno", ilustra Sellars.

Na mesma linha, "só somos seres verdadeiramente pensantes quando realmente pensamos".

Ao fazer isso, exercitamos o fato de sermos humanos. E o que é um bom ser humano, então?

Social, curioso e racional

É aquele que usa bem a razão, diz Sellars, acrescentando que "uma maneira de usarmos a razão é controlando os desejos e emoções irracionais que temos, impedindo que eles nos dominem."

"Ou seja, se um ser humano adulto ainda é excessivamente emotivo — fazendo birras quando não consegue o que quer e se comporta como uma criança — poderia-se dizer que ele nunca cresceu de verdade, que nunca se tornou adulto de verdade, certo?"

"Aristóteles também insiste que somos seres sociais e é por isso que temos que nos dar bem com outras pessoas. Isso é absolutamente fundamental."

"Outra coisa é que ele acha que, por natureza, somos curiosos, queremos conhecer e aprender, e que esse é um instinto humano natural."

"Se quisermos florescer e viver uma vida boa, devemos ser sociais, curiosos e racionais", diz Sellars.

Os conceitos de Aristóteles continuam enraizados porque "ele moldou a maneira como pensamos."

"Suas ideias e conceitos permearam nossa maneira natural de pensar a ponto de se tornarem imperceptíveis."

O que você acha... o argumento de Sellars te convenceu?


Fonte: BBC Brasil

sábado, 28 de setembro de 2024

Hildegarda de Bingen, a santa que descreveu o orgasmo feminino pela 1ª vez e 'inventou' fórmula da cerveja

Imagem: reprodução

Platão disse que quem inventou a cerveja era um homem sábio. Ele estava errado. Na verdade, foi uma mulher. Uma pessoa sábia, sim, mas uma mulher.

As mulheres não são apenas responsáveis pela descoberta, mas suas contribuições ao longo da história da cerveja foram cruciais para o desenvolvimento da bebida, e para a construção da concepção cultural do uso que fazemos dela hoje.

O livro The Philosophy of Beer (A filosofia da cerveja, em tradução livre) oferece uma história interessante de uma das bebidas mais consumidas no mundo, cuja produção remonta milhares de anos atrás. Mas que começou a passar por um processo de popularização mundial a partir do fim da Idade Média, quando era produzida em mosteiros europeus e transportada por navios que buscavam novos horizontes comerciais.

Mas qual é, de fato, a origem, da cerveja?

Há pouco mais de 7.000 anos, a fabricação de cerveja começou a se desenvolver na Mesopotâmia; eram as mulheres que misturavam grãos de cereais com água e ervas para fazer uma bebida com fins nutricionais.

Elas cozinhavam a mistura e, dessa mistura intuitiva, para aplacar a fome, surgia um caldo que fermentava espontaneamente.

Logo começaram a desenvolver suas habilidades em torno desse líquido turvo, espesso, mas altamente nutritivo, que também era capaz de iluminar o espírito.

Desde então e por centenas de anos, seu grau de conhecimento fez com que as mulheres fossem as únicas que podiam produzi-lo e também comercializá-lo. Elas eram responsáveis por sua produção e comercialização. Elas ainda eram responsáveis e as licenças e os equipamentos para produzi-lo eram delas.

E assim foi até a Idade Média, quando na Europa as licenças passaram para os nomes dos maridos.

A mudança legal da licença pode ter tido a ver com o fato de que, naquela época, a cerveja era um bem muito precioso e, embora fosse fabricada para consumo doméstico, o excedente era vendido para obter uma renda familiar extra. Assim, elas continuaram a trabalhar, mas o produto não era mais delas. E nem o dinheiro que ele rendia.

A versão mais difundida da origem da cerveja atual afirma que ela foi inventada por monges. No entanto, quando os monges viram o potencial do que as famílias e, em especial, as mulheres, já estavam fazendo, decidiram investir no cultivo de cereais para criar novas misturas e comercializá-las.


A versão mais difundida da origem da cerveja atual afirma que ela foi inventada por monges
 - Imagem: reprodução

Lúpulo e Hildegarda de Bingen

Entretanto, apesar desse monopólio clerical, a cerveja como a conhecemos hoje também foi inventada por uma mulher.

Foi na Idade Média que a fabricação de cerveja sofreu uma mudança substancial com a adição do lúpulo, um parente próximo da cannabis, cujas flores dão à bebida seu amargor característico e propriedades conservantes que permitem que ela seja armazenada por muito mais tempo.

A abadessa Hildegarda de Bingen (1098-1179), a versão feminina de Leonardo da Vinci, foi responsável pela descoberta que provocou essa mudança radical na fabricação de cerveja.

Essa boa mulher, que combinou sua função de mestre cervejeira com a de teóloga, escritora, compositora musical e botânica (em sua obra Physica, ela descreveu mais de 200 plantas), entre outras habilidades, acabou sendo canonizada pela Igreja Católica. Embora isso tenha levado doze séculos.

Em 2011, o Papa Bento 16 acrescentou Hildegarda ao catálogo de santos católicos, e um ano depois a nomeou “quarta Doutora da Igreja Católica”, depois de Santa Teresa, Santa Catarina e Santa Teresa de Lisieux.

Uma santa que descreveu o orgasmo

Além de sua notável contribuição para a cerveja, essa freira de clausura nos legou também uma outra “descoberta” prazerosa: a primeira descrição escrita conhecida de um orgasmo feminino.

Ao contrário de escritores da época, como seu contemporâneo Constantino, o Africano, que em seu Liber de coitu descreveu todos os tipos de prazeres carnais sem mencionar as mulheres, Hildegarda foi a primeira a ousar afirmar que o prazer não era obra de Satanás, que residia no cérebro e que as mulheres também o sentiam.

No Book of Causes and Remedies of Diseases, a carismática abadessa de Binguen escreveu que o sexo não era fruto do pecado e que o prazer sexual era uma questão de dois, e descreveu o momento do clímax e da ejaculação de um casal em termos inequívocos:

Assim que a tempestade da paixão surge em um homem, ele é lançado nela como uma pedra de moinho. Seus órgãos sexuais são então, por assim dizer, a forja à qual a medula dá seu fogo. Essa forja, então, transmite o fogo para os órgãos genitais masculinos e os faz queimar poderosamente.

E sua parceira está longe de ser um recipiente insensível:

Quando a mulher se une ao homem, o calor do cérebro da mulher, que tem prazer nele, faz com que ele sinta o prazer da união e ejacule seu sêmen. E quando o sêmen cai em seu lugar, esse calor muito forte do cérebro o atrai e o retém consigo mesmo, e imediatamente o rim da mulher se contrai e fecha todos os membros que, durante a menstruação, estão prontos para se abrir, assim como um homem forte segura uma coisa em sua mão.

Esse tratado médico foi publicado há doze séculos. A verdade é que, somente por isso, ela merecia ser uma santa.

*Manuel Peinado Lorca é professor emérito de Ciências da Vida e diretor do Jardim Botânico Real da Universidade de Alcalá (Espanha)

**Este artigo foi publicado no site The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original.

Fonte: BBC Brasil


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Feminismo atual é voltado a uma minoria privilegiada, diz filósofa feminista

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O feminismo atual é "distante" para a grande maioria das mulheres e só encontra eco entre as "muito privilegiadas". Essa avaliação é feita por Nancy Fraser, filósofa americana e professora titular de ciências políticas e sociais da New School for Social Research, em Nova York.

Feminista, Fraser publicou diversos livros sobre filosofia política e social nos EUA e Brasil, incluindo Feminismo para 99% - um manifesto, e conversou com a BBC News Brasil sobre o debate acerca da diversidade e pautas identitárias que toma conta do cenário político atual.

Ela faz críticas à esquerda sobre representantes de movimentos identitários que, segundo ela, se unem a uma "agenda neoliberal", que teve efeitos negativos no bem-estar social dos trabalhadores em todo o mundo, em uma luta para 1% da população.

"O feminismo para os 99%, como entendemos, é um projeto de entender que você não pode separar gênero de raça, classe, sexualidade, ecologia, democracia e políticas econômicas", disse.

Fraser cunhou o termo "neoliberalismo progressista" para tentar descrever uma aliança entre parte da elite capitalista, centrada em Wall Street e no Vale do Silício - e que busca o livre mercado para empresas e a redução da intervenção do Estado - e liberais de movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas e LGBTQIA+.

Para ela, a aliança do "neoliberalismo progressista" dominou a pauta política das últimas décadas e ajudou na ascensão de nomes como Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil.

Fraser também critica o debate que se formou acerca da indicação do advogado Cristiano Zanin Martins para a vaga no STF (Supremo Tribunal Federal) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste mês. Políticos de esquerda e representantes da sociedade civil afirmaram que a opção deveria ter sido por uma mulher negra.


'O feminismo atual é um grito distante para a grande maioria e faz eco apenas para
essas mulheres muito privilegiadas', diz Nancy Fraser - foto: reprodução

Para a filósofa, contudo, as condições de sexo e raça do candidato não devem ser as únicas a serem consideradas para a escolha.

Confira a entrevista da BBC News Brasil com a filósofa:

BBC News Brasil -Para começar, queria entender melhor a sua definição do "neoliberalismo progressista" e como a senhora vê a atual crise pela qual a democracia passa em países como EUA e Brasil?

Nancy Fraser - O neoliberalismo progressista é um termo que cunhei para tentar descrever uma aliança entre uma fração da elite capitalista, centrada em Wall Street, no Vale do Silício e Hollywood, lugares simbólicos do capital hi-tech, e de parte dos liberais mainstream de movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas e LGBTQIA+.

Em muitos países, o neoliberalismo se consolidou com esse tipo de aliança com os progressistas. Você poderia citar Ronald Reagan [ex-presidente dos EUA] e Margaret Thatcher [ex-primeira ministra do Reino Unido], tipos originais de conservadores e que introduziram o neoliberalismo nesses países, mas em outros locais, o neoliberalismo foi realmente consolidado por um tipo de política quase que de centro-esquerda.

Falamos, por exemplo, de Bill Clinton, que construiu o que chamamos de “Novos Democratas” - uma força política utilizada para marginalizar a ala esquerda do partido Democrata. Podemos citar também o novo Partido Trabalhista de Tony Blair, no Reino Unido, que são os exemplos mais célebres.

Clinton e Blair colocaram, em um mesmo movimento político, feministas, antirracistas, ambientalistas e ativistas LBGTQIA+ de um lado e uma parte muito cosmopolita e super tecnológica dos empresários do outro.

A ideia era realmente promover uma liberalização, mercantilização e financeirização da economia, mas que teve efeitos muito negativos na segurança econômica e no bem-estar social das classes trabalhadoras em todo o mundo.

As forças que desejavam esse tipo de projeto econômico precisavam de algum carisma, algum tipo de toque especial, que faria esse projeto se tornar atrativo e vinculado a algo que poderia obter amplo apoio. Isso, de certa forma, forneceria cobertura perante a sociedade, dado que essa política econômica é feita para os ricos, mas que, com isso, poderia ser vista como algo amigável pelo restante.

Portanto, tal política econômica foi fundida com uma forma de feminismo meritocrático, antirracista e ambientalista. Com isso, essa forma de política socioeconômica conseguiu a imagem de ser algo emancipatória, excitante, que olhava para frente.

Em alguns países, como na Alemanha liderada pelo ex-primeiro-ministro Gerhard Schröder, do SPD (Partido Social-Democrata alemão), essa política teve muito sucesso, mas acho que nunca houve um nome para isso. Por isso, comecei a definir esse conjunto de políticas como “neoliberalismo progressista”, pois eu queria realmente sinalizar o neoliberalismo como um projeto econômico muito inconstante e oportunista.

BBC News Brasil - O "neoliberalismo progressista" fez com que as discussões se tornassem mais identitárias, ao invés de econômicas, tanto nos EUA como no Brasil?

Fraser - Eu distinguiria a discussão entre políticas de distribuição e políticas de reconhecimento. Distribuição é exatamente sobre economia. É sobre trabalho, seguros, salários, sobre também quem paga impostos, quanto as empresas deveriam pagar ou quanto a classe média deveria pagar. Tudo isso é o que eu penso sobre as políticas de distribuição.


Fraser afirma que 'para ter uma sociedade genuinamente justa, precisamos de uma política
de inclusão e reconhecimento e de políticas de distribuição igualitárias' - foto: reprodução

Do outro lado, há as políticas de reconhecimento, que tem a ver realmente como nós reconhecemos todos os membros da nossa sociedade. Pessoas que pertencem a grupos que são historicamente marginalizados, como, por exemplo, gays e lésbicas, trans, mulheres negras, imigrantes, minorias religiosas, entre outros.

Essas pessoas serão reconhecidas como membros plenos da nossa sociedade? Eles terão os mesmos direitos? Para mim, você precisa das duas discussões. Para ter uma sociedade genuinamente justa, precisamos de uma política de inclusão e reconhecimento e de políticas de distribuição igualitárias. E, caso haja um desbalanceamento, se focar em um e ignorar o outro, as coisas irão dar errado.

Eu diria que na era do New Deal e da social democracia nos EUA, havia um grande stress sobre políticas mais igualitárias de distribuição, sem uma atenção igual para políticas de reconhecimento. Nas décadas seguintes, em especial nas décadas de 1980, 1990 e 2000, a ênfase mudou apenas para o reconhecimento ou diversidade.

Acredito que, por muito tempo, isso sugou o oxigênio de outras discussões. O foco principal dos movimentos sociais progressistas não estava na parte da distribuição, o que foi um desastre porque foi nessas décadas que o neoliberalismo estava se desenrolando e que era o momento real em que você precisava redobrar a atenção sobre a distribuição de renda.

Ao invés de trabalharmos para que ambas políticas fossem o foco e houvesse uma conexões entre eles, nós tivemos o foco apenas no reconhecimento ou, como você diz, nas pautas identitárias.

Mas, tenho que dizer que recentemente as coisas estão mudando novamente. Eu acho que nós estamos tendo, desde a eleição de Trump nos EUA em 2016, uma mudança das massas, que começam a se virar contra o sistema.

Com essas circunstâncias, há mais atenção sobre distribuição e há versões disso na direita e na esquerda, como Trump e Sanders, nos EUA, por exemplo. Agora, a diferença entre os dois está no reconhecimento. Trump é um branco, nacionalista, anti-imigração, antigay e antitrans, enquanto que do outro lado há inclusão.

Estamos começando a retornar nessa questão de distribuição e reconhecimento e, nos EUA, neste momento, a direita está fomentando uma guerra cultural focada naquilo que podemos falar nas escolas, o que devemos ensinar sobre o racismo nas escolas, dentre outras coisas.

Isso é uma estratégia deliberada para distrair a atenção para longe das políticas econômicas porque os Republicanos, incluindo Trump e seus concorrentes, ainda têm um programa econômico pró-ricos. Eles não querem falar muito sobre isso. Isso é distração.

Então, o desafio para o outro lado é resistir a ser tragado pela guerra cultural e deixar o debate econômico de lado ou, ao menos, entender como conectar essas duas visões novamente.

A diversidade está se tornando uma palavra utilizada apenas pelas empresas. Todas as companhias, toda universidade, tem um departamento de diversidade e essas pessoas são completamente desconectadas de qualquer ideia de como um conteúdo crítico deveria ser. Isso é uma política muito rasa. Não é algo igualitário.

As vezes, aqui nos EUA, nós dizemos "black faces in high places". Então, sem qualquer atenção para a situação da massa das pessoas negras, essa diversidade não possui um conteúdo real e é uma nova distração basicamente.

BBC News Brasil - Mas isso ocorreu por causa da própria esquerda ou a extrema-direita pautou o debate?

Fraser - Eu acho que é uma ótima questão, mas muito complicada. Eu venho pensando muito nisso. De um lado, nós não devemos fazer parte dessa política de distração, não podemos deixar com que todos os debates institucionais sejam sobre esses problemas. Nós não podemos jogar o jogo deles.

Ao mesmo tempo, o que eles estão fazendo é tornar alvo e usando de bode expiatório pessoas reais. Então, nós não podemos lidar com um projeto que nega serviços sociais para uma juventude trans, por exemplo, que está em uma situação frágil e vulnerável.

Nós temos que, de alguma forma, estarmos preparados para defender indivíduos que estão sendo usados, ao mesmo tempo que defendemos os direitos de reprodução, que é um outro foco de ataque.

Por isso, deveríamos falar sobre tais pontos, mas a parte difícil é perceber como conectar esses dois problemas. Isso não é fácil.

BBC News Brasil - A senhora acha que esse "neoliberalismo progressista" ajudou na eleição de presidentes da direita radical, como Trump nos EUA e Bolsonaro, no Brasil?

Fraser - Sim, com certeza. Nos EUA não há dúvidas que o bloco do neoliberalismo progressista, que consolidou o neoliberalismo e marginalizou a parte pró-trabalhista do partido Democrata, realmente tem uma grande parte de responsabilidade na deterioração das condições e dos padrões de vida no país.

No chamado Cinturão da Ferrugem, que é historicamente o coração da indústria americana e hoje é um terreno baldio com muitos problemas de vício em opioides e violência armada, o neoliberalismo progressista tem muito o que responder. Eles, basicamente, supervisionaram a transição de uma classe trabalhadora altamente sindicalizada para uma massa de trabalho mal paga e precarizada.

Não há dúvidas que isso ajudou Trump, mas também ajudou Bernie Sanders. Em outras palavras, as pessoas entenderam, em um certo momento, que eles não poderiam seguir essas políticas neoliberais, que eles precisavam de uma alternativa para uma situação que Antonio Gramsci chama de “crise da hegemonia”.

Elas perceberam que o establishment não é mais confiável, o senso comum já não era mais persuasivo, então as pessoas estavam olhando para uma alternativa radical. Algumas olharam para Trump, outras para Sanders, e o que é muito interessante é que às vezes elas optavam por Sanders, mas com ele fora da disputa, votaram em Trump, em um fenômeno semelhante ao que ocorreu no Brasil, com o voto “Bolsolula”.


Para Fraser, em alguns países, como os EUA, 'o feminismo liberal vem sendo
hegemônico' - foto: reprodução

Qualquer forma de neoliberalismo se tornou tóxica, politicamente falando. As pessoas começaram a procurar alternativas para esse sistema. Em um país como os EUA, onde o neoliberalismo se aliou aos progressistas, é compreensível que Trump fosse o beneficiário maior dessa busca. Isso porque o neoliberalismo se associou muito ao tema da diversidade e, ao rejeitar esse sistema econômico, acabam por rejeitar também a pauta identitária.

BBC News Brasil - No livro Feminismo para os 99% por que a senhora afirma que “o feminismo liberal está falido” e que “é necessário um feminismo para a grande maioria”. O que seria isso?

Fraser - O feminismo sempre foi um movimento com muitas correntes e facções diferentes, ou seja, o feminismo é algo com muitas visões e argumentações. No entanto, em países como os EUA, o feminismo liberal vem sendo hegemônico. Isso se tornou um padrão porque o liberalismo é muito forte na nossa cultura, em geral.

O feminismo surgiu como um movimento radical, em uma nova esquerda, anti-imperialista e anticapitalista, mas assim que a poeira baixou, o feminismo virou um grupo de interesse por assim dizer, e amplamente colado ao partido Democrata nos EUA.

Isso se tornou um assunto normal, uma tendência, e mais e mais focado em como colocar um pequeno número de mulheres em posições de poder dentro de uma hierarquia corporativa, do mundo político e até mesmo na hierarquia militar.

A ideia era que segurar as mulheres embaixo seria uma discriminação e se removessemos essa discriminação, essas mulheres super talentosas poderiam alcançar o topo. Isso é uma visão absurdamente rasa, que ignora completamente as bases da subordinação das mulheres em uma sociedade moderna, que é como dividimos o trabalho produtivo do trabalho de reprodução social, onde pagamos um e o outro não.

Isso é uma característica arraigada profundamente na sociedade, que tem efeitos gigantescos nas chances de vida de homens e mulheres. Então, focaram na ideia de que queremos a meritocracia, da ascensão talentosa, mas a meritocracia não é o mesmo do que igualdade.


Para Fraser, é necessário ir além da legalização do aborto - foto: reprodução

Eu acho que nós tivemos evidências suficientes nos últimos 40 anos para ver que esse feminismo realmente não é capaz de garantir uma condição satisfatória e igualitária para mulheres de todas as classes sociais e raças.

Isso foi manejado de maneira perfeita pela classe dominante, que já tem uma boa educação, boa formação cultural e muitos recursos, mas por isso nós tivemos basicamente um “feminismo de uma só questão”, focado apenas no gênero de uma mesma classe social.

Então, agora eu acredito que o problema é conseguir entender que não podemos isolar a questão de gênero. Se tentarmos, nós acabaremos no feminismo para 1% da população.

O feminismo atual é um grito distante para a grande maioria e faz eco apenas para essas mulheres muito privilegiadas, que possuem o luxo de dizer que nós não precisamos nos preocupar com classes, cor ou temas econômicos, apenas com gênero. O feminismo para os 99%, como entendemos, é um projeto de entender que você não pode separar gênero de raça, classe, sexualidade, ecologia, democracia e políticas econômicas.

Eu acho que sempre houve feministas que praticam esse tipo de feminismo para os 99%, mas que pode ter outros nomes pelo mundo. Nos EUA, os movimentos feministas populares existem, mas são muito marginalizados, enquanto que a mídia foca no feminismo de Hillary Clinton, das atrizes de Hollywood com o movimento “Me too”, mesmo que a maioria das vítimas de assédio sexual sejam trabalhadoras de fazendas ou de hotéis, por exemplo.

Quando Hillary Clinton perdeu para Donald Trump, no exato momento em que estávamos escrevendo o livro, pensamos que seria um tipo de chamado, uma derrota do feminismo liberal. Agora, eu não diria que o feminismo liberal está derrotado, mas acho que há mais abertura agora para formar alternativas de feminismo, como o que ocorre no Brasil e Argentina, onde algumas feministas conquistaram grande visibilidade e que representam o que chamamos de feminismo para 99%.

BBC News Brasil - No Brasil, o STF deverá colocar em julgamento a possibilidade do aborto legal ainda neste ano. No mesmo livro, as autoras afirmam que “o aborto legal faz pouco pelas mulheres pobres”. O que isso significa? A luta pelo aborto legal, em si, não é suficiente?

Fraser - Eu sou uma forte apoiadora do aborto legal, quero deixar isso bem claro. Mas, se você pensar qual é o objetivo que buscamos alcançar ao tornar o aborto legal é tentar dar as pessoas a liberdade, incluindo os recursos que elas precisam para entender a liberdade e fazer que a decisão de ter um filho seja autônoma. Para que elas consigam organizar suas vidas, elas precisam viver com o poder de decisão, mas também com dignidade, segurança e com suporte de um sistema público forte.

De maneira simples, eu estou dizendo que o fato de podermos interromper a gravidez quando nós quisermos é necessário, mas não o suficiente para ter uma autonomia reprodutiva. Aborto legal é uma condição absolutamente necessária, mas apenas uma. Há outras e precisamos de segurança dos meios de subsistência, moradia decente e acessível, assistência médica e suporte para as crianças, com escolas, etc. Isso faria com que as mulheres tivessem uma decisão realmente empoderada e autônoma.

No momento, as pessoas estão fazendo o seu melhor em termos de tentar dar o poder de decisão sobre a gravidez, mas infelizmente isso não é o ideal. Agpra, é a hora das feministas de esquerda tentar unir o direito ao aborto para o serviço social, com garantia de renda e moradia.

É o mesmo caso da violência contra a mulher. A esquerda entendeu que apenas colocar o parceiro abusador na cadeia não é o suficiente, que é necessário oferecer saídas reais para que as mulheres possam realmente sair de relações abusivas. Elas precisam ter um local seguro para criar suas crianças e reconstruir suas vidas, o que, novamente, é algo para o serviço social e o direito à renda e moradia.

BBC News Brasil - Neste mês, o presidente Lula indicou seu ex-advogado, um homem branco, para a Suprema Corte. Parte da esquerda criticou a indicação apenas por ser um homem branco, enquanto que a outra parte silenciou, mas sem uma discussão acerca das posições políticas do indicado. Como a senhora vê isso?

Fraser - Em uma escolha para uma Suprema Corte, eu acredito que é necessário prestar muita atenção para entender as posições jurídicas e em relação ao mundo do candidato.

Se voltarmos às eleições de 2016 nos EUA, eu apoiei Bernie Sanders contra Hillary Clinton. Eu sou uma feminista. Você acha que eu achei incrível ter mais um homem branco na Casa Branca? Mas o mais importante para mim, naquele momento, era o que Bernie e Hillary representavam. Para ser honesta, as feministas estavam divididas e também existiu esse tipo de debate que surgiu agora no Brasil.


Fraser vê como um erro o foco 'apenas na questão identitária' - foto: reprodução

Nós tivemos a experiência de eleger o primeiro presidente negro dos EUA, Barack Obama, e foi um momento de muita esperança, mas que se tornou uma grande decepção. Isso mostra os limites sobre essa discussão de ter que eleger um político que apenas pareça você fisicamente.

Claro que seria incrível ter uma pessoa negra e tenho certeza que há muitos negros e negras qualificados para serem indicados para o STF no Brasil. Mas, eu diria que focar exclusivamente na questão identitária é um problema.

BBC News Brasil - Discussões sobre as escolhas no STF baseada em diversidade também fazem surgir críticas sobre a suposta “americanização” da política brasileira, cada dia mais influenciada e pautada pelos debates e formas dos EUA. A senhora acredita nisso?

Fraser - Eu não tenho certeza. Vocês ao menos têm um partido dos trabalhadores, coisa que não temos por aqui (risos). Eu diria que o que ocorre em todo lugar é a influência das redes sociais e da tecnologia na comunicação política.

Isso é uma mudança no jogo e, com certeza, tem um efeito gigantesco. Se você me perguntar o que fez Trump ter a possibilidade de capitalizar os efeitos negativos do neoliberalismo na classe trabalhadora, eu responderia a mudança radical na estrutura da mídia e na comunicação política.

O que começou lá atrás, com a rádio, depois TVs como a Fox News, se transformou para as redes sociais. Agora, temos um mundo estranho da não-comunicação, fatos alternativos, etc. Discutimos os depoimentos de Trump para a Justiça, mas nas redes a população se divide como eles enxergam isso.

Não sei se as coisas são exatamente assim no Brasil, mas claramente podemos ver como a tecnologia também impacta a política por aí. Quando essa tecnologia de transformação encontra a deterioração das condições de vida da população, coisas como a eleição de Trump, que é um gênio da comunicação e da demagogia, podem ocorrer. Então espero que o Brasil consiga escapar dessa espiral.

Fonte: BBC Brasil


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