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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ibama proíbe pulverização aérea de agrotóxico letal a abelhas, o tiametoxam

Imagem: reprodução

Uso continua liberado para algumas lavouras, mas apenas por aplicação direta ou tratamento de sementes.

Após dez anos em reavaliação, o Ibama decidiu restringir o uso do tiametoxam, um dos agrotóxicos mais letais às abelhas. Em comunicado publicado na última quinta-feira (22), o órgão ambiental proibiu o uso de aviões agrícolas e tratores para a aplicação do produto.

O processo de revisão da substância foi alvo de lobby da fabricante brasileira Ourofino e da multinacional de origem suíça Syngenta, conforme mostrou a Repórter Brasil. O principal argumento utilizado pelas empresas em prol do agrotóxico era o risco de perda econômica dos produtores rurais.

A pressão do agro incluiu também a contratação de um ex-servidor do Ministério da Agricultura (Mapa) para ajudar nas negociações com órgãos públicos, além de uma campanha online que se baseou em um estudo limitado para defender a substância.

Apesar do lobby, o Ibama manteve a posição de restringir a substância. Diversas pesquisas científicas relacionam o uso do tiametoxam com a mortandade em massa de abelhas. Em 2018, a União Europeia proibiu o seu uso com o objetivo de proteger os insetos polinizadores, que são essenciais à reprodução de diversas espécies de plantas.

Os neonicotinóides, agrotóxicos feitos à base de nicotina, como o tiametoxam, atingem o sistema nervoso central das abelhas, fazendo com que fiquem desorientadas. Trazem ainda sequelas ao seu sistema de aprendizagem, digestão e imunológico, em muitos casos levando à morte.


Abelhas são insetos polinizadores essenciais ao ecossistema, mas suas populações
estão em queda no mundo - imagem: reprodução

No Brasil, o uso da substância ficou restrito em 25 cultivos diferentes, como café, soja e cana-de-açúcar. No entanto, os agricultores poderão utilizar o produto até o fim do estoque ou validade do produto. Já as empresas têm até 20 de agosto para fazerem as mudanças nas bulas.

A decisão impacta uma indústria bilionária. A comercialização de produtos com tiametoxam no Brasil atingiu a marca de 4.800 toneladas em 2022, segundo dados do Ibama obtidos pela Repórter Brasil.

Lobby intensificado

Uma das estratégias das empresas para impedir as restrições foi realizar encontros de forma constante com o governo federal na reta final do processo de reavaliação. Levantamento exclusivo da Repórter Brasil, em parceria com a agência de jornalismo de dados Fiquem Sabendo, mostrou que as fabricantes estiveram em 16 compromissos com autoridades em datas que coincidem com decisões importantes do Ibama sobre o pesticida.

A Ourofino chegou a contratar um ex-servidor do Ministério da Agricultura (Mapa) para representar a companhia em parte dessas reuniões. Fabiano Maluf Amui abriu uma empresa de consultoria quando ainda ocupava o cargo de assessor especial do ministério, em dezembro de 2022, e foi contratado pela companhia poucas semanas depois, após deixar o cargo público.

A lei sobre conflito de interesses define um período de seis meses em que um ex-servidor público não pode trabalhar em empresas privadas, para impedir que elas sejam favorecidas com informações sensíveis.

Segundo Bruno Morassutti, advogado da Fiquem Sabendo, há a possibilidade de não realizar o período de afastamento, desde que a Comissão de Ética Pública da Presidência seja consultada. Procurada pela reportagem, o órgão não respondeu se o ex-servidor entrou com pedido de dispensa.


Pulverização aérea de tiametoxam com uso de aviões agrícolas passa a ser proibido
no Brasil com a decisão do Ibama - imagem: reprodução

Pesquisa encomendada

Em 2021, mais de 6.000 toneladas de tiametoxam foram exportadas pela Syngenta ao Brasil, segundo dados da organização suíça Public Eye e da agência de jornalismo Unearthed, e revelados pela Repórter Brasil.

Durante três anos, a Syngenta financiou um estudo da Embrapa que concluiu que as abelhas não morriam com o uso do produto, desde que aplicado conforme a bula. A multinacional aproveitou a conclusão para iniciar uma campanha online em prol do tiametoxam, porém, a companhia ignorou o fato de que os resultados se restringiam apenas ao cultivo de café. Além disso, a pesquisa foi realizada em fazendas certificadas pela Syngenta, o que na avaliação de especialistas deixa o estudo limitado.

“Você desenha o estudo, escolhe uma metodologia que nem sempre é a mais correta a ser utilizada e o seu resultado vai dar do jeito que você quer. Você está criando um ambiente perfeito para o seu estudo chegar nos seus interesses”, afirma a nutricionista e pesquisadora Vitória Moraes, analista técnica da organização ACT Promoção da Saúde.


Card de campanha da Syngenta adota estudo restrito ao café para defender que
tiametoxam é seguro para todas as lavouras - imagem: reprodução

Nova Lei dos Agrotóxicos

A reavaliação do tiametoxam pode ser uma das últimas seguindo as regras atuais. O Congresso aprovou em dezembro a nova lei dos agrotóxicos, que concede ao Ministério da Agricultura a palavra final no que se refere à aprovação de pesticidas.

Historicamente liderada por empresários do agronegócio, a pasta tende a se manifestar favoravelmente aos pleitos do setor.

Ao sancionar a nova lei, o presidente Lula vetou o trecho que concede ao Mapa a palavra final, restituindo o poder do Ibama e da Anvisa. Mas a bancada ruralista já afirmou ter os votos necessários para reverter a decisão presidencial.

Caso isso aconteça, o Ibama e a Anvisa, que fazem análises técnicas do ponto de vista ambiental e de saúde, perderiam poder de influência nas decisões envolvendo agrotóxicos.

Fonte: Agência Pública


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Tem uma coisa que o Presidente da Câmara não quer que você saiba

Imagem: reprodução

No ano passado, a Agência Pública revelou essa informação de notório interesse público. E ele é tão grave que Arthur Lira, um dos políticos mais poderosos do país, começou uma cruzada contra a Agência Pública na Justiça para impedir todo mundo de saber que __________________________________.


Primeiro, Lira pediu que nossa reportagem fosse tirada do ar e que a Pública fosse impedida de falar sobre o assunto – o pedido foi negado em primeira instância por duas vezes, mas acatado em segunda por um desembargador do Distrito Federal. Agora, em nova investida contra a Pública, a defesa do deputado exigiu que um episódio do podcast Pauta Pública e uma coluna da diretora executiva Marina Amaral que comentavam as acusações de __________________________________também fossem removidos do nosso site. 

Só existe um nome possível para isso: censura. Pra deixar bem claro o que isso significa, decidimos tarjar nesse texto tudo aquilo que a Justiça nos proibiu de dizer

Antes eu achava que censura era coisa do passado, lá da época da ditadura. Era algo que artistas driblavam com poesia, que os jornais escancaravam com receitas de bolo publicadas no lugar de textos censurados pelo regime militar. Não poder saber algo que é de interesse público é incômodo, é revoltante, é inaceitável. E é exatamente isso que está acontecendo diante dos nossos olhos, em pleno 2024. 

Quando a Agência Pública descobriu que Arthur Lira tinha __________________________________, não corremos para publicar aquela informação, como fazem os sites de fofoca e sensacionalismo. Antes, a gente precisava ter certeza absoluta de que aquilo era verdade. 

Mesmo assumindo o risco de que outro veículo publicasse as acusações antes de nós, fizemos o que manda a ética jornalística: buscamos documentos judiciais que comprovassem aqueles fatos, checamos com variadas fontes, nos certificamos de que a ex-esposa de Arthur Lira, Jullyene Lins, estava segura para compartilhar aquelas informações com o público de demos total espaço para o outro lado. Escrevemos e editamos o texto com todo o cuidado do mundo. E só depois de tudo isso publicamos nossa reportagem. 

A revelação de que Arthur Lira tinha __________________________________  repercutiu durante algumas semanas. Quando a poeira baixou, o presidente da Câmara acionou a Justiça para varrer tudo aquilo de volta para debaixo do tapete

Não tivemos escolha se não cumprir a ordem da Justiça, pois do contrário teríamos que pagar uma multa muito alta. Mas enquanto nossos advogados se empenham em preparar nossa defesa, você pode demonstrar a sua solidariedade à Agência Pública

Poste nas suas redes sociais sobre a censura contra a liberdade de expressão a pedido de Arthur Lira, comente na mesa do almoço de família nesse fim de semana. E, se puder, faça uma doação para fortalecer o jornalismo da Pública

Por Giulia Afiune - Editora de Audiências da Agência Pública


Fonte: Agência Pública


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

ME DÊ PAPAI! Clientes da empresa de Arthur Lira Filho faturaram R$ 5 milhões com campanhas da Caixa

Imagem: reprodução
Omnia 360° tem como sócia filha de Luciano Cavalcante, ex-assessor do presidente da Câmara; dados foram obtidos via LAI.

Os veículos de mídia OPL Digital e RZK Digital, que são representados pela empresa Omnia 360°, do filho do deputado federal Arthur Lira (PP/AL), receberam R$ 5 milhões, entre julho de 2021 e novembro de 2023, em serviços prestados para a Caixa Econômica Federal, que desde o mês passado está sob o comando de um aliado do presidente da Câmara dos Deputados. 

A Agência Pública conseguiu, via Lei de Acesso à Informação (LAI), as notas fiscais emitidas pela OPL Digital, RZK Digital e Rocket Digital. As duas primeiras empresas são clientes da Omnia 360°, que pertence a Arthur Lira Filho, Ana Claudia de Oliveira e à Maria Luiza Cavalcante. Maria, conhecida como Malu, também é sócia da Rocket Digital junto com Rodolfo Darakdjian, proprietário da OPL Digital.

Ela também é filha do ex-assessor de Arthur Lira, Luciano Cavalcante, que foi alvo da Operação Hefesto da Polícia Federal desencadeada em junho deste ano, para investigar supostas irregularidades na compra de kits de robótica. A investigação foi arquivada por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, em setembro. Conforme antecipou a Pública, Mendes ainda ordenou a destruição de todos os áudios captados durante a operação.    

A sociedade entre Malu e Arthur Lira Filho foi revelada pelo site Congresso em Foco em julho de 2021. À época, o portal mostrou que eles abriram juntos, em dezembro de 2019, uma primeira empresa, a Mídia Nova Representações. Doze dias após o negócio vir à tona na imprensa, os dois fundaram então a Omnia 360° – atualmente, a Mídia Nova Representações está registrada apenas no nome de Maria Luiza, conforme consulta na Receita Federal. 

Assim como a Mídia Nova, a Omnia 360° é uma empresa de “representação de veículos de mídia”. Os clientes da Omnia 360° oferecem, por exemplo, publicidade na internet e em mídias expostas na rua, como painel de led em pontos de ônibus. 

Ou seja, a Omnia 360° fatura uma porcentagem dos negócios firmados para seus clientes com as agências de publicidade contratadas pelo governo — as que atualmente atendem a Caixa são Binder, Calia e Propeg. 

Segundo matéria da Folha de S. Paulo, representantes da Omnia 360 acompanharam seus clientes em 16 reuniões na Caixa, entre 2021 e 2022. O jornal também mostrou que a OPL e RZK Digital atuaram em campanhas publicitárias da Secretaria de Comunicação Social (Secom), nos ministérios da Saúde, Educação e do Banco do Brasil. 

Conforme os dados obtidos pela Pública via LAI, dos R$5,5 milhões referentes aos serviços prestados para a Caixa pelas três empresas ligadas à Omnia 360°, R$4,5 milhões foram contratados entre 2021 e 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL); e outros R$997 mil no governo Lula, em 2023. Desde novembro, o banco é dirigido por Carlos Vieira, que foi indicado pelo centrão de Arthur Lira para assumir o cargo após acordo do deputado com o presidente da República. 

Procurado, Lira não respondeu aos questionamentos da reportagem. A Omnia 360°, a OPL, RZK e Rocket Digital também não deram retorno. 

Malu Cavalcante, Arthur Lira Filho e Ana Claudia, sócios da Omnia 360°
- Foto: reprodução

A Caixa informou que o presidente da Câmara “não participou das negociações que envolvem a compra de mídia no banco”; destacou que não possui contrato com as empresas citadas e que “as agências de publicidade e propaganda licitadas que atendem a Caixa (Propeg, Calia e Binder) são responsáveis pela negociação e intermediação da compra dos espaços de mídia comercializados pelos representantes ou veículos”. 

De acordo com a Calia, “a participação ou não de representante comercial na negociação é prerrogativa de cada veículo, não cabendo à agência qualquer interferência ou juízo de valor a esse respeito”. “Vale dizer que a determinação do veículo se dá por meio de critérios técnicos, abalizada por ferramentas de aferição de audiência e performance de mídia de cada meio”, acrescentou. 

Já a Binder afirmou que segue todos os parâmetros técnicos exigidos pelo contrato. “A divulgação de uma campanha nacional mobiliza inúmeros veículos por todo país e cada veículo indica seu representante. Contamos com centenas de representantes e a Omnia 360° está inserida nesse universo. Todos com capacidade técnica e habilitadas no MidiaCad (Sistema de cadastro de veículos de comunicação da Secom) para receber demandas de publicidade de qualquer órgão estatal”.

A Propeg também informou que utiliza critérios técnicos para contratar veículos de comunicação em campanhas de alcance nacional, como, por exemplo, para a Caixa. “A escolha do representante é feita por cada veículo. A Omnia 360 é reconhecida como uma representante especializada em veículos utilizados por grande parte das agências de publicidade e anunciantes”, destacou a agência.

Contratos com a Caixa

O surgimento da Omnia 360, em 26 de julho de 2021, coincide com o início dos serviços da OPL Digital para a Caixa. De acordo com nota fiscal ao qual a reportagem teve acesso, a OPL foi contratada pela Nova S/A – que à época era uma das agências que atendia a Caixa – por R$ 40 mil, para participar da campanha “Quina de São João 2021”, no período de 18 a 25 de julho daquele ano.


Nota fiscal obtida via Lei de Acesso à Informação mostra serviço de 40 mil para campanha
 “Quina de São João 2021” - Foto: reprodução

Ao todo, de acordo com os documentos, a OPL Digital faturou R$ 2,2 milhões em serviços para a Caixa. Este ano, até agora, o veículo atuou em duas campanhas, no valor total de R$ 84 mil. Em março, a empresa foi contratada pela agência Propeg para fazer as campanhas da loteria da Caixa “Mais Milionária 2023” e do “Aniversário Caixa 162 anos”. 

A OPL Digital é comandada por Rodolfo Darakdjian, que abriu a Rocket Digital em fevereiro de 2022 em sociedade com Maria Luiza Cavalcante. Os serviços prestados pela Rocket à Caixa foram um dos primeiros do veículo de mídia, conforme indicam a numeração de notas fiscais obtidas pela reportagem – 2, 3, 5, 8. A primeira campanha do banco que a Rocket participou foi em dezembro de 2022, no valor de R$ 48,1 mil. Ao todo, a empresa já faturou R$ 567,9 mil.  

Já a RZK, faz publicidade para a Caixa desde fevereiro de 2022. Conforme os documentos, a empresa já faturou R$ 2,7 milhões em serviços prestados ao banco. 

A agência de publicidade que mais contrata os veículos representados pela empresa de Arthur Lira Filho é a Propeg (R$2,7 milhões), seguida da Binder (R$ 1,3 milhão) e da Calia (R$1,2 milhão).

Por Alice Maciel


Fonte: agenciapublica


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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Aumento de morte de crianças por leucemia é associada à expansão da soja no Brasil

Imagem: reprodução
Aplicação de agrotóxicos levou à morte adicional de 123 crianças em 11 anos na Amazônia e no Cerrado, revela pesquisa.

Em meio à discussão no Congresso de um projeto de lei para flexibilizar o acesso aos agrotóxicos no país, amplamente defendido pela bancada ruralista, um estudo divulgado na segunda-feira (30/10) associa o aumento de casos de leucemia infantil no Brasil à expansão do cultivo da soja e ao grande uso de pesticidas nas plantações do grão.

Eles encontraram pelo menos 123 mortes adicionais de crianças com menos de 10 anos entre 2008 e 2019 relacionadas indiretamente ao uso de pesticidas no cultivo de soja no Cerrado e na Amazônia.

O trabalho fez uma análise populacional, considerando 15 anos de dados de saúde, cruzando informações de câncer infantil com o avanço da soja pelos dois biomas. 

O grupo de pesquisadores norte-americanos, liderados por Marin Skidmore, da Universidade de Illinois, aponta no artigo que a área de soja no Cerrado triplicou de 5 milhões de hectares para 15 milhões de hectares entre 2000 e 2019. Na Amazônia, cresceu 20 vezes: de 0,25 milhão para 5 milhões de hectares. Já o uso de pesticidas nessas duas regiões – que foram as analisadas no trabalho – cresceu entre 3 e 10 vezes no mesmo período.

Este aumento, revelam, se refletiu nos casos da doença. De acordo com os cálculos dos cientistas, a cada 10 pontos percentuais de aumento na produção de soja, houve 4 mortes adicionais de crianças de menos de 5 anos e de 2,1 abaixo de 10 anos por 100 mil habitantes.


“Os resultados sugerem que cerca de metade das mortes pediátricas por leucemia no período podem ser ligadas à intensificação agrícola da soja e à exposição aos pesticidas”, afirmou Skidmore em comunicado à imprensa. O trabalho foi publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).


Aplicação de agrotóxicos levou à morte adicional de 123 crianças em 11 anos na
Amazônia e no Cerrado - Foto: reprodução

Os cientistas indicaram também que o contato com os produtos químicos deve ter se dado via fornecimento de água, em geral em localidades onde a produção de soja fica à montante na bacia hidrográfica. Eles chegaram a essa conclusão ao procurar evidências de aplicação de pesticidas rio acima. Os casos de leucemia estavam à jusante da mesma bacia. “Isso indica que o escoamento de pesticidas para as águas superficiais é um método provável de exposição”, explicou Skidmore.

Ou seja, as crianças que desenvolveram leucemia não moravam necessariamente nas áreas onde se dá a produção da soja – o que revela o amplo alcance dos pesticidas. Skidmore aponta que a área rural da região avaliada no trabalho tinha, de acordo com dados de 2006, cerca de 50% das casas com poços ou cisternas, mas a outra metade dependia do escoamento na superfície como fonte de água. “Se a água na superfície está acostumada, os pesticidas usados rio acima podem alcançar as crianças rio abaixo”, disse.

O artigo retrata o Brasil como o país que se tornou, nos últimos anos, tanto o líder mundial na produção de soja quanto de consumo de pesticidas perigosos. Segundo a análise, aplicamos, por hectare, 2,3 vezes mais pesticidas que os Estados Unidos e 3 vezes mais que a China, que são o primeiro e o terceiro colocado em volume total de agrotóxicos. O estudo relata ainda que o uso no cultivo de soja cresceu após a aprovação, em 2004, de variantes transgênicas do grão.

Um fator capaz de amenizar a mortalidade foi a presença de hospitais próximos às áreas de contaminação. De acordo com a pesquisa, as mortes de crianças por leucemia relacionadas com a expansão da soja se deram em regiões que ficavam a mais de 100 quilômetros de um centro de tratamento. A doença é tratável, mas depende de um atendimento oncológico especializado, o que não é amplamente oferecido no interior do Brasil, em especial na Amazônia, por exemplo.


“Nós certamente não estamos advogando por uma interrupção total do uso dos pesticidas”, diz a pesquisadora, reconhecendo que tiveram uma importância para a expansão da produção de soja. “São tecnologias importantes e válidas, mas precisam ser adotadas com segurança. [Os resultados] são um forte aviso de que o uso seguro de pesticidas é o melhor tanto para a produtividade agrícola quanto para as comunidades”, afirma. 

 

O recado final do artigo é mais duro: “Este trabalho sublinha a importância de considerar as implicações à saúde humana da intensificação da agricultura”.

Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), mais de 14 mil pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos no Brasil, segundo levantamento inédito feito pela Agência Pública e Repórter Brasil, com dados de 2019 a março de 2022.

Nos últimos anos, vários estudos vêm revelando a relação entre o uso intenso de agrotóxicos com diversos problemas de saúde e ao ambiente. A presença de substâncias cancerígenas nos pesticidas é bem conhecida, mas a relação direta de causa e efeito com o câncer é mais difícil de estabelecer.  

Levantamento recente feito pelo InfoAmazonia com a Fiocruz observou que mulheres, crianças e adolescentes de municípios do Mato Grosso que têm pelo menos 5% da área ocupada por soja têm risco entre 26% e 33% mais chances de desenvolver e morrer por leucemia e linfoma.

Por Giovana Girardi


Fonte: agenciapublica


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sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Como empresa de espionagem israelense alvo da PF se espalhou pelo poder público no Brasil

Imagem: reprodução
PRF, militares e governos de 9 estados contrataram serviços de empresa de espionagem Cognyte, agora sob investigação.

O uso de ferramentas de monitoramento virtual da empresa israelense Cognyte não se restringe à Abin (Agência Brasileira de Inteligência), alvo da Operação Última Milha, desencadeada pela Polícia Federal nesta sexta-feira (20) com autorização do STF (Supremo Tribunal Federal).

A operação cumpriu 25 mandados de busca e apreensão em cinco unidades da Federação, prendeu dois servidores da Abin e levou ao afastamento de outros três servidores, entre os quais o atual “número três” da agência, Paulo Maurício Fortunato. A PF investiga se o programa FirstMile foi utilizado contra críticos e opositores do governo Bolsonaro.

Secretário da Abin, Paulo Maurício Fortunato Pinto, foi afastado de seu cargo por suspeita de integrar um esquema de espionagem irregular

Secretário da Abin, Paulo Maurício
Fortunato Pinto, foi afastado de seu cargo
por suspeita de integrar um esquema de
espionagem irregular
- Foto: reprodução
Governos estaduais principalmente do campo da direita, como os de Goiás, São Paulo, Amazonas e Mato Grosso, a PRF (Polícia Rodoviária Federal), então na gestão do bolsonarista Silvinei Vasques, e setores das Forças Armadas também compraram ou renovaram contratos para obtenção de produtos da empresa nos últimos cinco anos.

A ponta do iceberg está na edição do Diário Oficial da União de 1º de dezembro de 2017, na qual consta o primeiro registro de contratação do programa pelo governo federal – ainda no mandato do então presidente Michel Temer (2016-2018), do MDB. A compra foi feita pela Abin por R$ 9 milhões.

Em 2017, a fabricante do FirstMile integrava o grupo israelense Verint Systems Inc. – que tinha Caio Cruz como seu representante comercial no Brasil. Trata-se do filho do então secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, o general da reserva do Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz, que depois integrou o governo Bolsonaro e com ele rompeu.

O filho de Santos Cruz cuidou das vendas da filial brasileira da Verint até fevereiro de 2021, quando a empresa desmembrou seu setor de inteligência para uma nova empresa, a Cognyte Software Ltd. De acordo com seu perfil na rede profissional Linkedin, consultado pela Agência Pública nesta sexta-feira (20), Caio Cruz seguia ligado ao grupo Cognyte no Brasil, atuando no setor de vendas em Brasília.

Em 2017, a primeira compra do governo federal de ferramentas do grupo israelense se deu junto à revendedora oficial da Cognyte no Brasil, então chamada de Suntech S/A.

Sediada em Florianópolis, a Suntech também trocou de nome e hoje se chama Cognyte Brasil S/A. A filial brasileira é creditada como uma das “principais estruturas” da companhia israelense no mundo, conforme declarações do grupo para a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC) – à qual presta contas por negociar ações no mercado financeiro.

O primeiro contrato com o governo foi assinado, sem licitação, a pedido do ex-secretário de Planejamento e Gestão da Abin Antônio Augusto Muniz de Carvalho, então responsável pelas compras do órgão, e do ex-diretor-adjunto da Abin Franck Márcio de Oliveira.

Na época, a companhia tinha vendido menos de R$ 2 milhões em produtos para o poder público no país. Dali em diante, a Cognyte acumulou mais de R$ 57 milhões em novos contratos, segundo um levantamento inédito da Agência Pública.

Contratos milionários em um terço dos estados

Secretarias de segurança de nove estados fecharam negócio com o grupo israelense no período apurado pela reportagem. Além de Mato Grosso, São Paulo, Amazonas e Goiás, apuração da Pública identificou que outros cinco estados fizeram contratos com a Cognyte desde 2017, de acordo com publicações nos diários oficiais: Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Pará, Espírito Santo e Alagoas. 

Em agosto, a Pública já havia divulgado com exclusividade na coluna “Entrelinhas do Poder” a existência de outro contrato, uma compra secreta de mais de R$ 4 milhões feita pela Comissão do Exército Brasileiro em Washington (EUA) para a “renovação de licenças de interesse” dos militares nos Estados Unidos.

A compra foi anunciada em 20 de janeiro passado, último dia de comando do general Júlio César de Arruda – destituído do cargo pelo governo Lula no dia seguinte em meio à crise com o Alto Comando do Exército após os episódios do 8 de janeiro.

Há registro de outra compra militar, feita pelo Comando da Força Aérea Brasileira na Europa. Um termo aditivo de um contrato firmado em 2022 foi assinado em 2023, já no governo Lula, relativo a um “sistema de sensoriamento de frequências UHF aerotransportado” para “integração e expansão da plataforma de OSINT (Open Source Intelligence), atualmente em uso pelo Comando da Aeronáutica”.

O diretor da Abin durante o governo Bolsonaro, Alexandre Ramagem (PL-RJ), foi procurado pela Agência Pública, por meio de sua assessoria, para que se manifestasse sobre a Operação Última Milha, mas não houve resposta até o momento. Hoje ele é deputado federal pelo Rio de Janeiro.


Ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem - Foto: reprodução

A Pública tentou falar com a Cognyte no Brasil, por meio de e-mail a uma de suas funcionárias e inúmeros telefonemas para a sede da empresa, em Florianópolis, nenhum atendido. Nenhum dos representantes e assessores de comunicação da empresa foi localizado.

Suspeita de exploração ilegal das redes de telefonia

Segundo o Código de Processo Penal brasileiro, o “acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza” – previsão na qual se encaixariam, segundo especialistas, programas como o FirstMile – “dependerá de autorização judicial”. Sem isso, a vigilância sobre qualquer indivíduo por ferramentas de espionagem se torna ilegal, segundo o entendimento de especialistas.

No exterior há um rastro de abusos ligados a governos que já recorreram a ferramentas da companhia. Reportagem do jornal israelense Haaretz revelou que a Cognyte vendeu softwares de localização de alvos em tempo real via GPS para o governo de Mianmar um mês antes de um violento golpe de Estado no país. De acordo com a Anistia Internacional, o governo do Sudão do Sul também usou produtos do grupo israelense para perseguir e violar direitos de opositores políticos.

De acordo com uma análise da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), o First Mile permite o rastreamento em tempo real de aparelhos móveis, como telefones celulares, e é capaz de “gerar alertas sobre a rotina de movimentação dos alvos de interesse” – ou seja, avisos sobre a localização de pessoas vigiadas por meio do programa.

Segundo a Abimde, o software de espionagem israelense usa sensores táticos e plataformas analíticas próprias para tratar os dados coletados – que, conforme o jornal O Globo divulgou em março passado, poderiam vir de até 10 mil números de celular vigiados simultaneamente pelos agentes da Abin.

Uma das suspeitas de ilegalidade no uso do First Mile vem da possível exploração do protocolo SS7, criado para facilitar a conexão de redes móveis por operadoras de telefonia no mundo.

Através de brechas de segurança neste protocolo usado por operadoras no Brasil e exterior, ferramentas espiãs podem interceptar a íntegra de mensagens de texto e chamadas de qualquer usuário, além de sua posição em tempo real, pois obtêm, sem consentimento dos usuários, informações da localização e do conteúdo de dados armazenados nos dispositivos monitorados.

No Brasil, porém, a extração de dados e localização em tempo real de aparelhos telefônicos – via falhas no protocolo SS7, por exemplo – depende de autorização judicial, o que não teria ocorrido no uso do First Mile pela Abin.

Segundo ofício enviado ao Ministério Público Federal (MPF) pela ONG Data Privacy, organização não-governamental que atua com direito digital no Brasil, falhas neste protocolo são geralmente exploradas da seguinte forma: “O atacante, no caso, configura o número do alvo e obtém, por meio dessa troca de informações no protocolo SS7, a informação de localização da estação rádio-base [das redes de telefonia no Brasil]”.

Ainda segundo a ONG, a exploração de falhas no SS7 configura uma “clara violação de privacidade” dos cidadãos vigiados.

“Atividade secreta e uso dissimulado” em Mato Grosso

Os contratos da companhia israelense com o poder público brasileiro não se referem apenas ao programa First Mile.

Há uma rumorosa compra, sem licitação, do governo Mauro Mendes (União Brasil) em Mato Grosso junto ao grupo estrangeiro. Por meio da Secretaria de Segurança Pública, a Polícia Civil fechou um contrato de R$ 4,6 milhões em junho de 2022.Obtido pela Pública, o documento revela o poderio de uma ferramenta adquirida chamada de GI2S – que opera de modo a “não revelar para as operadoras de telefonia celular que a rede está sendo monitorada”, “permitindo atividade secreta e uso dissimulado do aparelho” que esteja sob monitoramento dos policiais civis.


Governador de Mato Grosso, Mauro Mendes - Foto: reprodução

Em março passado, o jornal A Gazeta Digital revelou a aquisição do produto, o que levou Emanuel Pinheiro, adversário político do prefeito de Cuiabá, Mauro Mendes, a solicitar uma investigação sobre a compra. 

O caso ficou com o Ministério Público Estadual, que arquivou sua apuração meses depois, em agosto. Documentos obtidos pela Pública mostram contradições entre o que o governo informou sobre o potencial uso do GI2S e a real capacidade do aparelho de espionagem – poderio descrito pela própria gestão Mauro Mendes no contrato assinado com a Cognyte.

A Polícia Civil opera o produto israelense GI2S, que usa uma técnica patenteada há mais de dez anos pela Cognyte chamada IMSI Catcher. A sigla IMSI refere-se a um número com 15 dígitos que todo telefone celular possui, uma espécie de identidade do aparelho. De posse desse número, o produto é capaz de invadir telefones sem que seus donos notem, rastreando qualquer um que use os aparelhos durante a operação.

O governo Mauro Mendes comprou a ferramenta israelense sem licitação – uma manobra comum no mercado de tecnologias de espionagem, conforme apurado pela Pública. A descrição da Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso para justificar a compra do aparelho é reveladora.

“Utilizaremos todas as tecnologias necessárias e disponíveis para rastreamento e localização de alvos, com ações ativas e passivas, permitindo desde o acompanhamento de movimentos do alvo, com respectivos alertas pré-programados, até o uso de tecnologias para localização precisa e captura do mesmo”, de acordo com o anexo do contrato, obtido pela Pública.

A falta de um pregão público para a aquisição é algo relevante no caso. Sem uma licitação, o governo Mauro Mendes precisou relatar exatamente o que buscava com a compra, inclusive com detalhes técnicos, para que a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) de Mato Grosso aprovasse o negócio. Descritas no anexo do contrato, tais informações revelam a verdadeira capacidade do GI2S.

Operando de modo a “não revelar para as operadoras de telefonia celular que a rede está sendo monitorada”, a ferramenta pode extrair os números de série do chip e do telefone dos alvos, obtendo a “distância aproximada entre o sistema [GI2S] e o aparelho [vigiado] em metros”, “permitindo atividade secreta e uso dissimulado do aparelho” pelos policiais mato-grossenses.

O hackeamento também se torna possível porque a ferramenta da Cognyte permite invasões ativas, via “entrega automática de um SMS predefinido para qualquer telefone que seja capturado”. Este é um ponto relevante, pois o governo de Mato Grosso defendeu sua compra perante o Ministério Público (MP) Estadual alegando que o aparelho GI2S era uma “ferramenta passiva”.

A entrega de SMS para captura de telefones celulares remete ao chamado phishing, que é o envio de comunicações fraudulentas de modo a parecer que vêm de fontes confiáveis, invadindo proteções do aparelho com um pretenso consentimento do usuário – por exemplo, quando a pessoa interage ao clicar em links maliciosos enviados via SMS.

A Pública apurou que o GI2S é constituído por duas partes. Uma é física, um aparelho móvel que pode ser colocado em uma maleta e levado a um presídio durante uma rebelião ou dentro de um automóvel para uma tocaia, por exemplo, permitindo “à equipe de campo operações de maneira encoberta”. A outra parte é virtual, um programa que controla o aparelho móvel à distância e pode ser instalado em computadores, laptops e smartphones.

Por meio do “software de comando” do GI2S, quem o opera pode “varrer as frequências da região e mostrar uma lista com todos os dispositivos de comunicação detectados no raio de alcance” do produto. Assim, são coletados os números de série dos aparelhos, a operadora e a frequência de internet usada pelos alvos durante a operação, a posição GPS dos alvos, entre outros dados sensíveis, sem que os usuários dos telefones hackeados saibam. 

A ferramenta ainda é capaz de criar mapas de calor com a movimentação dos alvos, mostrando “as áreas de maior probabilidade da localização do alvo” aos operadores.

O GI2S também possui a função de “operação programada”, por meio da qual é possível criar coletas automatizadas de dados de “modo não supervisionado” – permitindo aos policiais colocarem o aparelho “em um local oculto para uma operação prolongada sem ter que controlá-lo”.

A Pública acessou, via lei de acesso à informação, o contrato entre a Polícia Civil do estado do Pará e a Cognyte, firmado em outro de 2021. De acordo com os arquivos, um outro software, o Clarian Advanced, foi comprado pelo governo de Helder Barbalho (MDB-PA) com inexigibilidade de licitação e também prevê à “interceptação, análise e solução p/ telefonia (sic)”. O contrato custou R$ 7,8 milhões ao estado. 

Pontas soltas na investigação

O GI2S já estava em posse da Polícia Civil à época em que ocorria um suposto esquema de vigilância e perseguição contra jornalistas críticos à gestão de Mauro Mendes, conforme revelado pela Pública em janeiro passado.

Há um histórico de casos similares no meio político no estado, como um escândalo que envolveu supostas escutas telefônicas ilegais concedidas por juízes entre 2014 e 2017 durante o mandato do ex-governador Pedro Taques (Solidariedade), na chamada “Grampolândia Pantaneira”.

O recente pedido de arquivamento da investigação do MP de Mato Grosso sobre a Cognyte foi assinado no dia 18 de agosto pelo então subprocurador-geral de Justiça do estado Marcelo Ferra de Carvalho. Com base em documentos oficiais ligados à mesma compra, a Pública encontrou pontas soltas na investigação.

Em nenhum momento de sua argumentação para decidir pelo arquivamento do caso, o subprocurador-geral mencionou informações contidas no anexo do contrato da Cognyte com o governo – onde estão descritos a verdadeira capacidade do aparelho e o que a gestão de Mendes buscava com a compra.

No documento, o subprocurador-geral cita um ofício do então coordenador de Inteligência Tecnológica do governo do estado, delegado Eduardo Rizzoto de Carvalho, que teria relatado que o aparelho da Cognyte seria uma “ferramenta passiva”.

Porém, no anexo do próprio contrato assinado com o grupo israelense consta a seguinte descrição da Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso: “Utilizaremos todas as tecnologias necessárias e disponíveis para rastreamento e localização de alvos, com ações ativas e passivas”.

Ainda no pedido de arquivamento, o subprocurador-geral descreveu como a Procuradoria-Geral do Estado (PGE/MT) investigou a compra do aparelho de espionagem após a denúncia na imprensa local.

A PGE apenas se reuniu com a delegada-geral da Polícia Judiciária Civil, Daniela Silveira Maidel, ainda em março (quando o caso veio à tona), “para que fossem esclarecidas as polêmicas em torno do assunto”, e consultou o coordenador da área de inteligência da polícia, que “consignou que o aparelho não é capaz de realizar interceptação telefônica, telemática ou de dados”.

Antigos aliados de Bolsonaro usam programas da Cognyte

Mato Grosso não é o único estado que adquiriu o programa GI2S. O Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa de São Paulo também o utiliza, conforme apurado pela Pública.

O governo paulista adquiriu o programa da Cognyte pela primeira vez ainda em 2017 e, o atual governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), outro ex-ministro de Jair Bolsonaro (PL), renovou seu uso – de acordo com o Diário Oficial do Estado.

O contrato de R$ 8,9 milhões trata da “aquisição de sistema de radiofrequência para Polícia Militar do Estado de São Paulo” e foi assinado em 9 de março passado, ou seja, cinco dias antes da revelação do caso First Mile pelo jornal O Globo. A compra foi anunciada no Diário Oficial de São Paulo no dia 13 de abril, mais de um mês após a assinatura do contrato.

O Diário Oficial mostra que a gestão de Ronaldo Caiado (União Brasil) em Goiás foi um dos primeiros governos estaduais, ainda em 2020, a adquirirem ferramentas da Cognyte após a compra inicial da Abin.

Não foi divulgado, porém, quanto o antigo aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e fundador da União Democrática Ruralista (UDR) gastou no “acréscimo de hardware, infraestrutura e licenças adicionais” do grupo israelense. A Pública pediu esclarecimentos sobre o contrato ao governo Caiado, via Lei de Acesso à Informação, mas o pedido foi indeferido.

Meses após a compra pelo governo Caiado, a PRF gastou R$ 5 milhões com produtos da Cognyte. Em 21 de setembro de 2021, a gestão do hoje preso Silvinei Vasques assinou o contrato, válido por cinco anos, para “a contratação de serviços de manutenção, suporte, migração do sistema Verint [antigo nome da matriz da Cognyte] Web Intelligence e realização de treinamento oficial” para uso da ferramenta – segundo o Portal da Transparência.

Quase um ano depois, em julho de 2022, o governo de Wilson Lima (União Brasil), no Amazonas, também adquiriu produtos da empresa israelense. Ao custo de R$5,9 milhões, a Polícia Civil do estado fechou a compra de um “equipamento satelital para identificação, rastreamento, monitoramento e interceptação de indivíduos em atividades relacionadas ao tráfico de drogas em ambiente urbano e florestal” para o Departamento de Investigações sobre Narcóticos (DENARC).

Por Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Rubens Valente e edição de: Ed Wanderley


Fonte: Agencia Pública


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quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Entenda o que ocorre se STF e Congresso tomarem decisões diferentes sobre o marco temporal

Foto: reprodução

Julgamento será retomado no Supremo enquanto projeto que limita demarcação de terras indígenas avança no Senado

A decisão sobre a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas está simultaneamente nas mãos de dois poderes da República: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. A Agência Pública entrevistou especialistas para entender o que ocorre caso a Corte e o parlamento encaminhem definições diferentes sobre o tema.

O movimento indígena e organizações indigenistas acreditam que o STF deve rejeitar o conceito jurídico, segundo o qual só devem ser reconhecidos pelo Estado territórios ocupados pelos indígenas em outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. 

A retomada do julgamento pelo tribunal foi marcada para esta quarta-feira (30), após o ministro André Mendonça devolver o processo na noite da última quinta-feira (24) – ele havia pedido vistas no dia 7 de junho. Por enquanto, são públicos três votos: os do relator Edson Fachin e de Alexandre de Moraes, contrários à tese, e o de Kassio Nunes Marques, favorável. Oito ministros ainda precisam se posicionar sobre o tema e podem paralisar o processo para analisá-lo mais profundamente.

Já no Congresso, a expectativa é de que o projeto de lei que trata do assunto (PL 2.903/23) seja aprovado. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne 50 dos 81 senadores e 324 dos 513 deputados federais, defende o marco temporal e articula para que o PL 2.903/23 seja votado antes da conclusão do julgamento no Supremo. 


PL 2903 impacta direitos previstos na Constituição
- Foto: Joédson Alves/Agência Brasil - reprodução

Na semana passada, a matéria passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, e agora tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Lá, a relatoria ficou com o senador Marcos Rogério (PL-RO), que já se manifestou publicamente a favor do marco temporal. 

A etapa seguinte à CCJ é a votação do PL no plenário do Senado. Depois disso, se os senadores fizerem mudanças no texto, ele volta para a Câmara, que pode aceitá-las ou rejeitá-las, sem propor novos trechos ao projeto. 

Concluída essa fase, a matéria será encaminhada para análise do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancionar ou vetar dispositivos do texto. Se houver vetos, eles serão examinados pelo Congresso, em sessão conjunta da Câmara e Senado, que pode derrubá-los. Só ao fim desse processo, a lei será promulgada e entrará em vigor.


PL deve ser votado no plenário do Senado
- Foto: Roque de Sá/Agência Senado - reprodução

O jurista Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e especialista em direito constitucional, explica que, caso o marco temporal vire lei pelas mãos do Congresso antes da conclusão do julgamento no STF, a Corte pode seguir por dois caminhos.

A decisão sobre a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas está simultaneamente nas mãos de dois poderes da República: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. A Agência Pública entrevistou especialistas para entender o que ocorre caso a Corte e o parlamento encaminhem definições diferentes sobre o tema.

O movimento indígena e organizações indigenistas acreditam que o STF deve rejeitar o conceito jurídico, segundo o qual só devem ser reconhecidos pelo Estado territórios ocupados pelos indígenas em outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. 

A retomada do julgamento pelo tribunal foi marcada para a quarta-feira (30), após o ministro André Mendonça devolver o processo na noite da última quinta-feira (24) – ele havia pedido vistas no dia 7 de junho. Por enquanto, são públicos três votos: os do relator Edson Fachin e de Alexandre de Moraes, contrários à tese, e o de Kassio Nunes Marques, favorável. Oito ministros ainda precisam se posicionar sobre o tema e podem paralisar o processo para analisá-lo mais profundamente.

Já no Congresso, a expectativa é de que o projeto de lei que trata do assunto (PL 2.903/23) seja aprovado. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne 50 dos 81 senadores e 324 dos 513 deputados federais, defende o marco temporal e articula para que o PL 2.903/23 seja votado antes da conclusão do julgamento no Supremo. 

PL 2903 impacta direitos previstos na Constituição

Na semana passada, a matéria passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, e agora tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Lá, a relatoria ficou com o senador Marcos Rogério (PL-RO), que já se manifestou publicamente a favor do marco temporal. 

A etapa seguinte à CCJ é a votação do PL no plenário do Senado. Depois disso, se os senadores fizerem mudanças no texto, ele volta para a Câmara, que pode aceitá-las ou rejeitá-las, sem propor novos trechos ao projeto. 

Concluída essa fase, a matéria será encaminhada para análise do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancionar ou vetar dispositivos do texto. Se houver vetos, eles serão examinados pelo Congresso, em sessão conjunta da Câmara e Senado, que pode derrubá-los. Só ao fim desse processo, a lei será promulgada e entrará em vigor.

PL deve ser votado no plenário do Senado

O jurista Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e especialista em direito constitucional, explica que, caso o marco temporal vire lei pelas mãos do Congresso antes da conclusão do julgamento no STF, a Corte pode seguir por dois caminhos.


“Pode dizer: não é mais comigo, porque já existe uma lei sobre isso”, afirma, destacando que essa decisão ficará a cargo do relator do processo, o ministro Edson Fachin. “Ou pode dizer: há uma lei fixando o marco temporal [para demarcação de terras indígenas] a partir de 5 de outubro de 1988, que era o que eu já estava discutindo, então vou apreciar a constitucionalidade daquilo que o Congresso definiu”. 

 

De acordo com Lima, nesta última hipótese, o STF poderia aproveitar o julgamento atual para analisar a constitucionalidade da lei.

A advogada Ana Carolina Alfinito, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e assessora jurídica da ONG Amazon Watch, reconhece a possibilidade de o STF decidir não mais se posicionar sobre o marco temporal caso seja instituída uma lei que determina a sua aplicação como critério para a demarcação de terras indígenas. No entanto, ela a considera pouco provável. 


“O relator está muito interessado que esse julgamento aconteça. A presidente [da Corte] Rosa Weber também quer pautar [a questão]. Isso se tornou, inclusive, um tema de debate dentro do STF”, pontua. 

 

Alfinito avalia ainda que, com o voto de Alexandre de Moraes, proferido em 7 de junho, o STF tem a oportunidade de “fazer uma conciliação” em torno do marco temporal. O ministro rejeitou a tese, mas colocou duas novas propostas sobre a mesa: o pagamento de “indenização prévia” a proprietários de imóveis sobrepostos a terras indígenas; e a compensação por “territórios de interesse público”. Esta última situação prevê a possibilidade do Estado oferecer aos indígenas áreas alternativas àquelas que reivindicam. 


Ministra do STF Rosa Weber deseja se manifestar sobre o tema ainda em setembro
 - Foto: José Cruz/Agência Brasil - reprodução

Para a advogada, a indenização seria uma forma de apaziguar os dois lados. “O tribunal está numa posição confortável: é capaz de superar a tese inconstitucional do marco temporal e, ao mesmo tempo, agradar as forças políticas que o defendem”, argumenta.

Na visão de lideranças indígenas e especialistas, porém, o PL 2.903/23 traz uma série de outros ataques aos direitos indígenas que vão além do marco temporal. 

Entre outros pontos, o texto atual proíbe a ampliação de territórios já demarcados e permite que obras relacionadas à “política de defesa e soberania nacional” sejam realizadas sem consulta aos povos afetados (leia aqui reportagem da Pública sobre 10 itens polêmicos do PL). 

Um parecer da consultoria jurídica da Advocacia-Geral da União (AGU) junto ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) publicado neste mês concluiu que “diversos dispositivos” do projeto de lei são inconstitucionais.

Por causa desses vários pontos polêmicos, os especialistas ouvidos pela reportagem compreendem que, se a matéria for convertida em lei, será necessário o questionamento de sua constitucionalidade no STF.

Caso o Supremo conclua seu julgamento antes de  o PL 2.903/23 ser votado pelo Congresso, a expectativa dos especialistas é que isso acabe interferindo na tramitação legislativa. “Se o STF decidir logo, certamente influenciará no texto em curso no Legislativo. Seria muito estranho o Legislativo afrontar o STF com um texto que colide com a decisão da Corte”, afirma Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, considera que a decisão trará repercussões à tramitação do projeto.

Por Anna Beatriz Anjos


Fonte: agenciapublica