sexta-feira, 4 de março de 2022

Contaminação recorde por agrotóxicos no Paraná atinge mais de 50 crianças

Samuel da Silva Jobim, promotor
do Ministério Público em Quedas
do Iguaçú - Foto: Reprodução

Nuvem de Paraquate, potencialmente fatal, intoxicou 96 pessoas, a maioria crianças que estavam em escola vizinha à área de plantação.

Quase cem pessoas foram intoxicadas no início de novembro no município de Espigão Alto do Iguaçu com PARAQUATE, um agrotóxico que está proibido na Europa desde 2007. O pequeno município, de 5 mil habitantes, fica no centro-oeste paranaense, 356 quilômetros da capital, Curitiba.

Trata-se do caso com mais vítimas na história recente do estado, responsável por 17% da produção nacional de grãos como soja e milho, numa área correspondente a pouco mais de 2% do território brasileiro. Dos 96 afetados, 52 são crianças, a maioria alunos de uma escola rural que funciona colada à área agrícola onde o veneno estava sendo aplicado.

A médica Lilimar Regina Naldony Mori, chefe da Divisão de Vigilância em Saúde da Secretaria da Saúde do Paraná, responsável pelo atendimento, classificou os casos como intoxicação leve e aguda – qualquer efeito à saúde resultante da exposição a um agrotóxico dentro de 48 horas, segundo a Organização Mundial da Saúde.

Plantação de milho que foi atingida pela pulverização de PARAQUATE, um defensivo
agrícola usado para matar as ervas e preparar a terra para o plantio - Foto: Reprodução

Crianças e adultos que entraram em contato com a nuvem de PARAQUATE relataram sintomas como fortes dores de cabeça, estômago e barriga, tonturas e vômitos. Todos condizentes com os de intoxicação aguda pelo agrotóxico, segundo o pesquisador Luiz Cláudio Meirelles, especialista em agrotóxicos da Fiocruz e gerente-geral de Toxicologia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 1999 e 2012. “Essas são reações bem típicas de intoxicação aguda por PARAQUATE, que também pode causar irritações de pele e lesões, principalmente na mucosa e na língua”, diz.

De acordo com Lilimar, não houve necessidade de internação e os sintomas desapareceram em até dez dias.

Foi sorte. A exposição aguda a quantidades maiores de PARAQUATE é quase sempre fatal, segundo a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), que alerta sobre os riscos em uma publicação intitulada “Um gole pode matar”. A própria gerência de Toxicologia da Anvisa já alertou sobre os riscos do agrotóxico, num documento de setembro de 2017: “A exposição ocupacional ao PARAQUATE é relevante principalmente devido às evidências de maior sensibilidade humana à exposição dérmica a esse agrotóxico, com possibilidade de absorção sistêmica”.

O PARAQUATE foi comprado e utilizado na propriedade de Lino Passaia, o agricultor mais próspero da região, dono de quase 100 hectares (o equivalente a 1 quilômetro quadrado, ou mais de cem campos de futebol) apenas em Espigão Alto do Iguaçu, em que produz soja e milho. A contaminação foi causada pelo desrespeito a uma norma estadual que estabelece distância mínima de 500 metros entre a área pulverizada e “núcleos populacionais, escolas, habitações e locais de recreação”.

A história da intoxicação massiva de Espigão Alto do Iguaçu é um triste exemplo do uso indiscriminado e sem cuidados de agrotóxicos no Brasil. E de como mesmo as vítimas tendem a minimizar o risco a que estão submetidas.

Como nasceu a nuvem tóxica

O dia 7 de novembro, uma quarta-feira, amanheceu claro e com muito vento na pequena comunidade rural de Boa Vista do São Roque, onde vivem algumas centenas de pessoas – parte delas acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), há mais de dez anos instalados ali. Ainda assim, trata-se de uma das principais localidades de Espigão Alto do Iguaçu.

As aulas corriam normalmente na escola rural do lugar – um só prédio em que na verdade funcionam duas diferentes, uma municipal, até o quinto ano do ensino fundamental, e outra estadual, para alunos do sexto ao nono anos e do ensino médio. Eram por volta de 10 horas quando uma funcionária entrou na sala de Carla Martelli, diretora da escola municipal Licarlos Passaia.

“‘Tem um louco aí passando veneno’, ela me falou”, recorda Carla. Ela correu à quadra de esportes. Ao lado, há um pequeno parque com brinquedos infantis. Ali, viu os estudantes grudados ao alambrado que separa a quadra – e os limites da escola – das terras de Lino Passaia. Estavam encantadas com a nova aquisição do agricultor, uma espécie de trator especial para pulverizações chamado Uniport, mas conhecido na região como “gafanhoto”. Alta e com rodas quase da altura de um adulto, a máquina atraiu a atenção das crianças.

Trator pulveriza agrotóxico próximo à escola - Foto: Reprodução

“Era nossa aula vaga, estávamos na quadra. Ficamos vendo aquela máquina passando alguma coisa na terra. Veio o vento e senti uma coisa molhada no meu rosto”, lembra Aline, de 14 anos, aluna do oitavo ano – o sobrenome das crianças será omitido na reportagem.

Tratava-se de um spray de PARAQUATE que o vento empurrou na direção da escola, do posto de saúde e das casas da comunidade. “De noite minha cabeça doía muito. De manhã, quando acordei, doía o estômago, fiquei enjoada, vomitei”, lembra a menina

“Quando passou a máquina, todo mundo correu pra olhar. Eu não, fiquei sentada na arquibancada. Mas veio o vento e comecei a espirrar”, diz Bruna, de 12 anos, do sétimo ano. Era só o começo. “Depois deu dor cabeça, de barriga, diarreia. Eu não conseguia dormir, me contorcia de dor. E ainda não melhorei. Ontem mesmo minha barriga doía muito”, relatou a garota mais de dez dias depois do episódio.

“É a primeira vez que vejo uma situação dessas, envolvendo tantas crianças”, admitiu Samuel da Silva Jobim, do Ministério Público (MP) do Paraná. “O secretário [de Saúde] nem teria como impedir uma investigação criminal. O caso já é maior que ele, a polícia já sabe, o MP já sabe. O boletim está registrado e a investigação vai ser feita”, afirma Samuel. Segundo ele, o crime não vai prescrever e o MP já está investigando. “Mas os procedimentos de apuração tomam tempo. O mais urgente é resolver a questão de saúde pública. Todas as informações que tenho são de que a prefeitura está agindo para resolver a situação”.

“Vários municípios da região em que trabalhei têm situações assim, com lavouras coladas a áreas urbanas. Um envenenamento dessa dimensão é o primeiro que chegou a mim. Mas casos menores devem acontecer diariamente, e as pessoas nem sabem porque estão doentes”, afirma João Luiz Marques Filho, promotor de justiça, que investiga o impacto ambiental do acidente. “Sem sombra de dúvida deve haver subnotificação.”

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Fonte: apublica.org


Obs: Este texto foi publicado há mais de 3 anos (11/12/2018).


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O projeto Por Trás do Alimento é uma parceria da 

Agência Pública e Repórter Brasil para investigar 

o uso de agrotóxicos no Brasil.