sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Por que olhar histórico é essencial para entender conflito na Faixa de Gaza

Imagem: reprodução

Professora da Universidade do Arizona, nos EUA, que estuda a história palestina explica como área conhecida como "maior prisão a céu aberto do mundo" se formou.

O foco nos conflitos no Oriente Médio voltou novamente para a Faixa de Gaza, com o ministro da Defesa de Israel ordenando um "cerco completo" ao enclave palestino.

A operação militar, que envolve extensos bombardeios a residências, segue um ataque surpresa em 7 de outubro de 2023, por militantes do Hamas que se infiltraram em Israel a partir de Gaza e mataram mais de 900 israelenses. Em retaliação, as Forças Armadas de Israel mataram mais de 800 gazenses. E esse número pode aumentar nos próximos dias.

Enquanto isso, uma ordem de interromper o fornecimento de alimentos, eletricidade e água para Gaza só agravará a situação dos residentes naquilo que tem sido chamado de "a maior prisão a céu aberto do mundo."

Mas como Gaza se tornou uma das partes mais densamente povoadas do planeta? E por que ela é agora o lar da ação militante palestina ? Como estudiosa da história palestina, acredito que entender as respostas a essas perguntas fornece um contexto histórico crucial para a violência atual.

Breve história de Gaza

A Faixa de Gaza é uma estreita faixa de terra na costa sudeste do mar Mediterrâneo. Com cerca do dobro do tamanho de Washington D.C., ela está encaixada entre Israel, ao norte e leste, e o Egito, ao sul.


Mapa mostra a região da faixa de Gaza — Foto: Creative Commons / reprodução

Um antigo porto comercial e marítimo, Gaza faz parte da região geográfica conhecida como Palestina. No início do século 20, era habitada principalmente por árabes muçulmanos e cristãos que viviam sob o domínio otomano. Quando a Grã-Bretanha assumiu o controle da Palestina após a Primeira Guerra Mundial, intelectuais de Gaza se uniram ao emergente movimento nacional palestino.

Durante a Guerra de 1948, que estabeleceu o Estado de Israel, o exército israelense bombardeou 29 vilas no sul da Palestina, levando dezenas de milhares de habitantes a fugir para a Faixa de Gaza, que estava sob o controle do exército egípcio, implantado após a declaração de independência de Israel. A maioria deles e seus descendentes permanecem lá até hoje.

Após a Guerra dos Seis Dias de 1967, entre Israel e seus vizinhos árabes, a Faixa de Gaza ficou sob ocupação militar israelense. A ocupação resultou em "violações sistemáticas dos direitos humanos", de acordo com o grupo Anistia Internacional, incluindo a expulsão de pessoas de suas terras, destruição de residências e repressão até mesmo de formas não violentas de dissidência política.

Os palestinos promoveram duas grandes insurgências, em 1987-1991 e em 2000-2005, na esperança de pôr fim à ocupação e estabelecer um Estado palestino independente.

O Hamas, um grupo militante islâmico palestino com sede em Gaza, foi fundado em 1988 para lutar contra a ocupação israelense. Esse e outros grupos militantes lançaram ataques repetidos contra alvos israelenses em Gaza, levando à retirada unilateral de Israel da região em 2005.

Em 2006, foram realizadas eleições legislativas palestinas. O Hamas venceu seu rival secular, Fatah, que havia sido amplamente acusado de corrupção. Não houve eleições em Gaza desde então, mas pesquisas de março de 2023 indicaram que 45% dos gazenses apoiariam o Hamas em caso de votação, em comparação com 32% para o Fatah.

Após um breve conflito entre militantes do Hamas e do Fatah em maio de 2007, o Hamas assumiu o controle completo da Faixa de Gaza. Desde então, Gaza está sob controle administrativo do Hamas, embora ainda seja considerada sob ocupação israelense pelas Nações Unidas, pelo Departamento de Estado dos EUA e por outros órgãos internacionais.

Quem são os palestinos de Gaza?

Os mais de 2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza fazem parte da comunidade palestina global, de 14 milhões de pessoas. Aproximadamente um terço dos moradores de Gaza traça as raízes de suas famílias em terras dentro da própria faixa. Os dois terços restantes são refugiados da guerra de 1948 e seus descendentes, muitos dos quais são originários de cidades e vilarejos ao redor de Gaza.

Os palestinos de Gaza são predominantemente jovens: quase metade da população tem menos de 18 anos. O enclave é também muito pobre, com uma taxa de pobreza que chega a 53%.


Famílias em Gaza estão se abrigando em escolas da Agência das Nações Unidas de
Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) — Foto: © UNRWA/Mohammed Hinnawi / reprodução

Apesar desse quadro econômico sombrio, os níveis de educação são relativamente elevados. Mais de 95% das crianças gazenses de 6 a 12 anos estão na escola. A maioria dos estudantes palestinos em Gaza se forma no ensino médio, e 57% dos alunos da prestigiosa Universidade Islâmica de Gaza são do sexo feminino.

No entanto, devido às circunstâncias do entorno, os jovens palestinos em Gaza têm dificuldade em levar uma vida plena. Para os formados entre 19 e 29 anos, a taxa de desemprego chega a 70%. E uma pesquisa do Banco Mundial realizada este ano constatou que 71% dos gazenses apresentam sinais de depressão e altos níveis de transtorno de estresse pós-traumático.

Vários fatores contribuem para essas condições. Um dos principais é o bloqueio de 16 anos imposto a Gaza por Israel e pelo Egito, com apoio dos Estados Unidos.

Anos de bloqueio

Pouco depois das eleições de 2006, a administração Bush nos EUA tentou forçar o Hamas a sair do poder e trazer um líder rival do partido Fatah, considerado mais amigável a Israel e aos estadunidenses.

O Hamas antecipou o golpe e assumiu o controle total de Gaza em maio de 2007. Em resposta, Israel e o Egito, com apoio dos Estados Unidos e da Europa, fecharam as travessias de fronteira para dentro e para fora da Faixa de Gaza e impuseram um bloqueio terrestre, aéreo e marítimo.

O bloqueio, que ainda está em vigor, limita a importação de alimentos, combustível e materiais de construção; restringe a distância que os pescadores de Gaza podem ir ao mar; proíbe praticamente todas as exportações; e impõe rígidas restrições à movimentação de pessoas dentro e fora da região. Em 2023, Israel permitiu que apenas cerca de 50 mil pessoas saíssem de Gaza por mês, segundo dados da ONU.


Um edifício que abriga a sede da UNRWA em Gaza sofre danos significativos após
ataques aéreos nas proximidades — Foto: © UNRWA / reprodução

Os anos de bloqueio devastaram a vida dos palestinos em Gaza. Os habitantes não têm água suficiente para beber e para saneamento. Eles enfrentam cortes de eletricidade que duram de 12 a 18 horas por dia. Sem água e eletricidade adequadas, o frágil sistema de saúde de Gaza está "à beira do colapso", de acordo com o grupo de direitos médicos Medical Aid for Palestine.

Essas restrições atingem com mais intensidade os jovens e os mais vulneráveis de Gaza. Israel rotineiramente nega permissões a pacientes doentes que necessitam de cuidados médicos fora da faixa. Estudantes brilhantes com bolsas de estudo para estudar no exterior frequentemente descobrem que não podem partir.

Peritos da ONU afirmam que esse bloqueio é ilegal à luz do direito internacional. Eles argumentam que a medida constitui um castigo coletivo aos palestinos de Gaza, o que viola as Convenções de Haia e de Genebra, que formam a base do direito internacional.

Sem fim para o sofrimento

Israel alega que o bloqueio a Gaza é necessário para garantir a segurança de sua população e será suspenso quando o Hamas renunciar à violência, reconhecer Israel e cumprir acordos anteriores.

Mas o Hamas tem rejeitado consistentemente esse ultimato. Em vez disso, os combatentes militantes aumentaram os disparos de foguetes caseiros e morteiros em áreas povoadas próximas à Faixa de Gaza em 2008, buscando pressionar Israel a suspender o bloqueio. Eles esporadicamente atacaram o país dessa maneira nos anos seguintes.

Israel lançou quatro grandes ofensivas militares em Gaza — em 2008-09, 2012, 2014 e 2021 — na tentativa de destruir as capacidades militares do Hamas. Essas guerras mataram 4 mil palestinos, mais da metade dos quais eram civis, além de 106 pessoas em Israel.

Nesse período, a ONU estima que houve mais de US$ 5 bilhões em danos a residências, agricultura, indústria, infraestrutura de eletricidade e água de Gaza.

Cada uma dessas guerras terminou em um frágil cessar-fogo, mas sem uma resolução real do conflito. Israel busca dissuadir o Hamas de disparar foguetes. Este e outros grupos militantes afirmam que, mesmo quando mantiveram cessar-fogos anteriores, Israel continuou a atacar os palestinos e se recusou a suspender o bloqueio.

O Hamas ofereceu uma trégua de longo prazo em troca do fim do bloqueio a Gaza. Israel se recusou a aceitar a oferta, mantendo sua posição de que o grupo deve primeiro renunciar à violência e reconhecer seu Estado.

Nos meses que antecederam a escalada mais recente, as condições em Gaza se deterioraram ainda mais. O Fundo Monetário Internacional informou em setembro que as perspectivas econômicas de Gaza "permanecem sombrias". As condições se tornaram mais difíceis quando Israel anunciou, em 5 de setembro de 2023, que interromperia todas as exportações em um ponto-chave de travessia de fronteira de Gaza.

Sem um fim à vista para o sofrimento causado pelo bloqueio, parece que o Hamas decidiu romper com o status quo em um ataque surpresa aos israelenses, incluindo civis. Os ataques aéreos de retaliação de Israel e sua imposição de um "cerco completo" à Faixa de Gaza aumentaram ainda mais o sofrimento dos gazenses comuns.

É um lembrete trágico de que os civis sofrem mais com esse conflito.

*Maha Nassar é professora associada na Escola de Estudos do Oriente Médio e da África do Norte na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos.

Por Maha Nassar* | The Coversation


Fonte: revistagalileu


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