sábado, 2 de abril de 2022

O que é 'escuta profunda' e por que ela ajuda a melhorar os relacionamentos

Foto: Reprodução
Hawraa Ibrahim Ghandour (à esquerda) participou de um projeto para cidadãos libaneses que os encorajou a ouvir uns aos outros.

"Se uma mulher muçulmana usava o véu decide parar de vesti-lo, eu costumava pensar que ela era uma pessoa ruim e que não merecia ser minha amiga. Se a conhecesse, eu a intimidaria", explica a libanesa Hawraa Ibrahim Ghandour.

Ela diz que pontos de vista que carrega foram formados crescendo em uma família muito religiosa. O pai dela preferia que a menina fizesse amizade com pessoas semelhantes. Hoje, Ghandour observa que continuou esses valores na vida adulta e no trabalho como professora de inglês do ensino médio.

Ghandour é uma das 150 pessoas no Líbano que participaram de um projeto de escuta profunda, administrado pelo British Council (instituto cultural público do Reino Unido dedicado à difusão da língua e da cultura inglesa), em colaboração com a BBC.

O objetivo era aprender habilidades ligadas à empatia, ao silêncio e à eliminação de julgamentos. Um ano depois, Ghandour vem refletindo sobre como o que ela aprendeu ajudou a abrir mais a mente.

"Aprendi a ouvir mais, a não julgar, a tentar compreender e a dar tempo aos outros para comunicarem as mensagens que desejam. Depois, dar uma resposta adequada para verificar se realmente entendi o que eles queriam dizer."

Tolerância

O que ela agora vê como fanatismo e intolerância se estendia a qualquer um que fosse diferente.

"Eu costumava ser contra os refugiados sírios no Líbano", diz.

"Pensava que os sírios não cuidavam da higiene e não viviam uma vida libanesa adequada."

Hoje, no entanto, Ghandour trabalha nas tardes de terça-feira em uma escola para refugiados sírios, apesar da reação chocada da própria família.


Ghandour trabalha uma tarde por semana em uma escola para refugiados
sírios - Foto: Reprodução

Todas as manhãs, Ghandour encontra Mayada, uma enfermeira refugiada da Síria, durante o café da manhã.

Elas se conheceram quando Mayada estava cuidando da mãe de Ghandour, e agora as duas mulheres estão frequentemente na casa uma da outra.

Ghandour diz que os novos relacionamentos a ajudaram a se tornar mais receptiva.

"No passado, talvez eu não estivesse me comunicando efetivamente com as pessoas, ou talvez estivesse apenas ouvindo a mídia, que desempenha um papel importante na estigmatização", explica.

"Se nos escutarmos, acabamos descobrindo que temos muito em comum: sentimentos humanos que compartilhamos", acrescenta.

No entanto, a amizade de Ghandour com Mayada não impede que ela tenha sérias dúvidas sobre alguns aspectos da cultura da amiga. O filho de Mayada, por exemplo, está prestes a se casar com uma jovem de 16 anos, o que não é incomum na comunidade de refugiados sírios.

"Eu aceito que esta é escolha dele", pondera Ghandour. "Ao ouvir profundamente, você entende que o outro não é seu inimigo, mesmo que esteja se comportando de maneira diferente."

Como funciona a escuta profunda

A escuta profunda é usada para lidar com conversas difíceis e garantir que ambas as partes sintam que estão sendo ouvidas.

A escuta profunda é usada para lidar com conversas difíceis e garantir que ambas as
partes sintam que estão sendo ouvidas. - Foto: Reprodução

A técnica envolve ser genuinamente curioso sobre a outra pessoa, com um forte desejo de entendê-la. O objetivo principal é se conectar com o outro como indivíduo e construir uma relação de confiança.

Entenda a seguir como colocar tudo isso em prática seguindo quatro passos:

Peça ao seu interlocutor para explicar a perspectiva dele e por que possui uma opinião tão forte sobre um determinado assunta. Ouça, sem interromper, deixando de lado julgamentos, contra-argumentos e soluções.

Resuma o enredo principal do que ouviu e verifique se entendeu corretamente, incluindo as emoções e o contexto da história. Isso não significa que você tem que concordar com tudo.

Pergunte se o interlocutor concorda com o resumo que você fez. Se ele não estiver de acordo, peça para ele explicar mais.

Continue este processo até que o orador dê um sonoro "sim". Neste ponto, é provável que ele possa ouvir o seu lado da história.

Ferramenta de trabalho

Mohammad, um trabalhador humanitário libanês, conta que não sabia ouvir o outro e que isso atrapalhava o processo de negociação, parte essencial do trabalho que faz.

"Eu era aquela pessoa que sempre interrompia, que sempre sabia o que você estava tentando dizer", admite.

"Eu começava com minhas suposições e depois tentava validá-las. E suposições podem ser mortais."

Mohammad usa as habilidades de escuta no trabalho, ajudando pessoas deslocadas em
Mosul, no Iraque - Foto: Reprodução

Logo depois de passar pelo treinamento em escuta profunda, Mohammad conseguiu um emprego em Mosul, no Iraque, onde trabalha com autoridades locais, organizações não governamentais e agências da Organização das Nações Unidas (ONU) para criar um plano de ajuda aos deslocados da cidade.

Para ter sucesso na nova posição, Mohammad teve que conciliar muitos grupos diferentes com um grande número de ideias opostas.

"Devemos mandar os deslocados de volta para casa? Podemos tentar integrá-los à cidade onde estavam? Eles aceitarão morar em um bairro com pessoas de outra tribo?", lista.

Mohammad lembra-se vividamente das informações que recebeu antes de começar a trabalhar. À medida que um colega descreveu a função e os requisitos, ele começou a sentir que havia algumas informações básicas de que precisaria para cumprir a função, mas que não estavam sendo compartilhadas adequadamente.

A ideia da escuta profunda é ouvir sem interrupção e realmente tentar entender
 o que a outra pessoa quer dizer - Foto: Reprodução

"Acredite, no setor humanitário você precisa entender as personalidades de todos os envolvidos para coordenar o trabalho efetivamente. É preciso diferenciar quem é um facilitador, quem está estragando a situação e quem está bloqueando o processo."

Naquele momento, Mohammad foi lembrado do treinamento de escuta profunda e da importância de dar espaço a alguém. A ideia é aguardar alguns segundos depois que a pessoa termina de falar, tanto como sinal de respeito quanto para permitir que ela compartilhe mais informações.

Depois que um colega terminou de falar, ele aguardou 20 segundos.

"Nesses 20 segundos, consegui ganhar um pouco de confiança e me relacionar com ele", avalia.

"Depois dessa pequena espera, nosso relacionamento meio que mudou e ele compartilhou comigo experiências reais e a percepção dos indivíduos com os quais teria que trabalhar".

Três meses depois, Mohammad acredita que essa pequena mudança de postura permitiu entender como a cidade de Mosul funciona e fazer grandes progressos com planos para uma resposta coordenada.

Impacto emocional

Há momentos, no entanto, em que Mohammad prefere não utilizar as habilidades de escuta profunda recém-adquiridas.

"No campo da ajuda humanitária, se você ficar realmente bom nisso e estiver em uma conversa individual, acaba atingindo um nível emocional muito profundo para o qual pode não estar preparado", conta.

Mohammad se recorda de uma conversa com um taxista que disse ter sido açoitado 18 vezes pelo crime de levar no carro uma mulher sem a escolta de um homem, algo que era proibido quando a cidade estava sob controle do autointitulado Estado Islâmico.

"Existe um lado sombrio na escuta profunda", explica Mohammad, pensativo.

"Eu sei que agora não é seguro para mim ter essas conversas. Preciso ser capaz de me separar da experiência e do sofrimento dos outros. Pessoalmente, ainda não estou pronto para dominar esse lado emocional."

E Ghandour, citada no início da reportagem? Como ela concilia as novas crenças com a própria criação e os valores do pai?

O pai dela morreu há alguns anos, mas todas as quintas-feiras Ghandour visita o túmulo. "Sinto que ele pode me ver do céu e estou feliz por ele estar feliz e orgulhoso", confessa.

"Quanto mais conhecemos os outros, menos medo e preconceito temos deles. Talvez meu pai tenha descoberto que todas as pessoas são iguais em sua humanidade."

Fonte: BBC Brasil