sábado, 26 de março de 2022

ESPECIAL BBC: A verdade sobre a cidade ecológica que a Arábia Saudita planeja no deserto

Imagem: Reprodução

Praias que brilham no escuro. Bilhões de árvores plantadas em um país dominado pelo deserto. Trens que levitam. Uma lua de mentira. Uma cidade sem carros, livre de carbono, construída em linha reta ao longo de 170 km no deserto.

Estes são alguns dos planos de Neom, uma ecocidade futurística que é parte da estratégia da Arábia Saudita para tornar-se um país verde. Mas não parece bom demais para ser verdade?

Neom afirma que será um "modelo para o futuro, no qual a humanidade progride sem comprometer a saúde do planeta". O projeto de US$ 500 bilhões (R$ 2,53 trilhões) é parte do plano saudita chamado Visão 2030 para reduzir a dependência do petróleo - a indústria que enriqueceu o país.

Cobrindo uma área total de mais de 26.500 km² - mais que o Kuwait, Israel ou o Estado de Sergipe -, Neom ficará, segundo seus idealizadores, totalmente fora dos limites do sistema judiciário atual da Arábia Saudita, sendo regido por um sistema legal autônomo a ser criado pelos seus investidores.

Local projetado para a construção de Neom (destacada em vermelho)
- Imagem: Reprodução


Ali Shihabi, ex-banqueiro que agora faz parte do conselho de administração de Neom, afirma que o megaterritório incluirá uma cidade com 170 km de comprimento chamada A Linha, em linha reta ao longo do deserto.

Pode parecer improvável, mas Shihabi explica que A Linha será construída em etapas, bloco por bloco. "As pessoas afirmam que é um projeto maluco que irá custar zilhões, mas ela será construída módulo por módulo, de forma a atender à demanda", afirma ele.

De forma similar às superquadras de Barcelona livres de trânsito, ele explica que cada bloco será autossuficiente e incluirá instalações como lojas e escolas, de forma que tudo o que as pessoas precisam estará a cinco minutos de distância, a pé ou de bicicleta.

Quando estiver completa, a viagem através da Linha será feita por trens de hipervelocidade e a viagem mais longa "nunca durará mais de 20 minutos", segundo afirmam seus projetistas.

E ainda há mais. Neom abrigará Oxagon - uma cidade flutuante sobre a água com 7 km de extensão, que será a maior estrutura flutuante do mundo. O CEO (diretor-executivo) de Neom, Nadhmi al-Nasr, afirma que a cidade portuária "receberá seus primeiros inquilinos para a construção no início de 2022".

Mais acima desse "centro industrial" no litoral do Mar Vermelho, Neom anunciou planos de estabelecer o maior projeto de restauração de recifes de coral do mundo. Seu website - que às vezes parece ter saído de um romance de ficção científica - afirma que a primeira fase do megaterritório estará construída até 2025.


Imagens: Reprodução

Este é o plano. Mas a realidade, por enquanto, é mais modesta.

A imagem de satélite mostra atualmente um único bloco sendo construído no deserto. Além de fileiras de casas, ele inclui duas piscinas e um campo de futebol. Ali Shihabi afirma que esse é o campo dos funcionários de Neom, mas não estamos no solo para verificar.

Mas qual a viabilidade de construção de uma cidade de ponta com credenciais verdes no meio do deserto?

Manal Shehabi, especialista em energia da Universidade de Oxford, no Reino Unido, afirma que, para avaliar o grau de sustentabilidade que Neom pode ter, existem muitos pontos a serem considerados. Por exemplo: os alimentos serão produzidos localmente em um sistema que não use quantidade excessiva de recursos ou serão importados do exterior?

O website afirma que Neom será "a maior cidade autossuficiente em alimentos do mundo". Ele apresenta uma visão revolucionária de agricultura vertical e estufas para um país que atualmente importa cerca de 80% dos seus alimentos. A questão é se isso pode ser feito de forma sustentável

Críticos acusam o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, que é a força motora atrás de Neom, de praticar o que é conhecido como "greenwashing" - fazer grandes promessas sobre o meio ambiente para desviar a atenção da realidade.

O "gigaprojeto" é parte da visão do príncipe herdeiro de uma Arábia Saudita mais verde. Uma semana antes das negociações sobre mudanças climáticas da COP26 em novembro de 2021, ele também lançou a Iniciativa Verde Saudita, anunciando o objetivo de zerar as emissões do país até 2060.

Inicialmente, este foi considerado um passo importante na comunidade do clima, mas não resistiu às análises, segundo Joanna Depledge, especialista em negociações internacionais sobre mudanças climáticas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Ela indica que, para limitar o aquecimento a 1,5 °C, a produção global de petróleo precisa ser reduzida em cerca de 5% por ano a partir de agora até 2030.

Mas a Arábia Saudita prometeu aumentar a extração de petróleo poucas semanas depois de apresentar promessas verdes importantes para a conferência do clima COP26. O ministro da energia do país, príncipe Abdulaziz bin Salman, teria afirmado que a Arábia Saudita não interromperia o bombeamento de petróleo. "Nós ainda seremos os últimos a ficar em pé e todas as moléculas de hidrocarbonetos serão extraídas", segundo ele.

"Acho muito alarmante que a Arábia Saudita aparentemente ainda ache que pode continuar a explorar e extrair petróleo no contexto atual", afirma Depledge.

As emissões de cada país vêm do combustível que ele queima, não do que é extraído. Por isso, um país como a Arábia Saudita, que extrai milhões de barris por ano e os exporta para outros países, não precisa incluir essa quantidade em suas emissões.

Mesmo em nível doméstico, a Arábia Saudita tem um longo caminho pela frente. Embora seu último objetivo estabelecido seja de geração de 50% da sua eletricidade por energia renovável até 2030, apenas cerca de 0,1% da energia elétrica do país foram gerados desta forma em 2019.

'Pensamento criativo'

Os defensores de Neom afirmam que é preciso começar do zero e construir uma cidade inteligente e sustentável alimentada por energia solar e eólica, com água fornecida por usinas de dessalinização livres de emissões de carbono.

"A Arábia Saudita precisa de pensamento criativo, pois a água do Oriente Médio está se esgotando", afirma Ali Shihabi, do conselho consultivo de Neom.

A Arábia Saudita é um país árido e cerca da metade da sua água é produzida por usinas de dessalinização (instalações industriais que extraem o sal da água do mar) alimentadas por combustíveis fósseis. Trata-se de um processo caro e o subproduto gerado - uma mistura de salmoura e substâncias tóxicas - é descartado de volta para o mar, com consequências prejudiciais para os ecossistemas marinhos.

O processo de dessalinização de Neom será alimentado por energia renovável e a salmoura, em vez de ser descartada no mar, será usada como matéria-prima industrial. Mas há uma dificuldade: o uso de energias renováveis em usinas de dessalinização nunca foi bem sucedido.

Shihabi admite que Neom "é um projeto experimental, mas, se apenas esse projeto funcionar e pudermos resolver o problema da água no Oriente Médio, tudo o que Neom fizer terá valido a pena".

Mas os especialistas do clima receiam que depender de tecnologias não comprovadas pode ser uma forma de atraso climático, retardando ações significativas contra os efeitos das mudanças climáticas - algo que às vezes é descrito como "otimismo tecnológico".

Os moradores locais

Existem também grandes dúvidas sobre quem se beneficiará com a construção de Neom.

O terreno desolado entre o litoral do Mar Vermelho e a fronteira montanhosa com a Jordânia pode ter parecido o terreno vazio perfeito para construir um míni-Estado. Mas existem pessoas que já vivem ali - os Huwaitats, membros de uma antiga tribo de beduínos tradicionalmente nômades. O projeto promete criar empregos e gerar riqueza nessa região subdesenvolvida, mas, até agora, a população local não viu nenhum benefício.

Defensores dos direitos humanos afirmam que duas cidades foram evacuadas e 20 mil Huwaitats foram removidos à força, sem compensação adequada, para a construção da megacidade.

Um homem chegou a ser morto na ocasião. Em abril de 2020, Abdul Rahim al-Huwaiti recusou-se a ser despejado de sua casa na região de Tabuque e começou a postar vídeos online. Dias depois, ele foi morto a tiros pelas forças de segurança sauditas, como ele havia previsto que iria acontecer.


Abdul Rahim al-Huwaiti postou vídeos online afirmando que ele esperava ser morto
- Imagem: Reprodução (youtube)

Fahad Nazer, porta-voz da embaixada da Arábia Saudita em Washington, nos Estados Unidos, contesta as alegações de remoção forçada dos Huwaitats, mas não contesta a morte de al-Huwaiti, que ele chama de "pequeno incidente".

Para os turistas e os ricos

Os habilidosos esforços de relações públicas de Neom - parte do esforço para atrair turistas para diversificar a economia saudita - também vêm recebendo críticas.

Vídeos promocionais chamativos exibem todo o charme e glamour de uma cidade cosmopolita com suas próprias leis e forças de segurança, em um território independente da velha guarda que governa a Arábia Saudita.

Mas os críticos afirmam que o projeto atenderá principalmente aos muito ricos. Há relatos de que foram construídos palácios para a família real do país. Imagens de satélite mostram um heliporto e um campo de golfe entre os primeiros projetos de construção.

Ali Shihabi afirma que a cidade abrigará a todos, "desde trabalhadores até bilionários", mas reconhece que não vem sendo percebida dessa forma.

"Acho que o problema de Neom é uma falha na sua estratégia de comunicação", afirma ele. "As pessoas acham que é apenas um brinquedo de gente rica."

Decisão difícil

"Começar esta jornada rumo a um futuro mais verde não tem sido fácil, mas não estamos evitando decisões difíceis", afirma Mohammed bin Salman. "Nós rejeitamos a falsa escolha entre preservar a economia e proteger o meio ambiente".

Neom claramente é parte dessa visão. Mas, até agora, os sauditas estão evitando a decisão mais difícil de todas: abandonar a produção de combustíveis fósseis.

Fechar as torneiras será difícil, segundo Manal Shehabi, a especialista em energia de Oxford. "Acho que seria muito difícil, do ponto de vista econômico, esperar que qualquer país com tamanha dependência de petróleo e gás repentinamente parasse de usá-los e de explorar os recursos oferecidos."

Os sauditas afirmam que estão respondendo às necessidades de energia do mundo. "A realidade é que a demanda por hidrocarbonetos em todo o mundo ainda está presente", afirma o porta-voz da embaixada saudita, Fahad Nazer.

Nos bastidores, a Arábia Saudita e outros países dependentes de combustíveis fósseis vêm tentando insistentemente atenuar as palavras relativas aos compromissos internacionais sobre o clima, segundo Joanna Depledge, da Universidade de Cambridge - uma estratégia que foi mantida na COP26.

"A Arábia Saudita intervinha de forma muito intensiva, tentando apontar incertezas, custos e impactos naturais para minimizar a urgência dos problemas causados pelas mudanças climáticas", afirma Depledge, que acompanhou de perto as negociações da COP26 em Glasgow, no Reino Unido.

Mas Fahad Nazer nega as alegações de greenwashing e insiste que a Arábia Saudita está caminhando para um futuro verde. E, embora permaneçam as dúvidas se Neom cumprirá suas promessas, Ali Shihabi nos convida a reservar um apartamento na Linha, "antes que todos o façam".

Fonte: BBC Brasil