quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Aplicativos de entrega dão as ordens na cozinha

A empresária Matilde Arruda recebe
24 mil pedidos de sushi por mês.
- Foto: Leonardo Rodrigues/Valor
Depois de avaliar demanda, apps chamam restaurantes para abrir “dark kitchens”, cozinhas que ficam fechadas ao público e só trabalham para atender a seus pedidos.

Se depender dos grandes aplicativos de entrega de comida, o tradicional convite “visite a nossa cozinha”, exposto em boa parte dos restaurantes, tende a desaparecer. Empresas como iFood, Rappi e Uber Eats estão investindo nas chamadas “dark kitchens”, que só funcionam para atender ao próprio serviço de “delivery”. O endereço dessas cozinhas - também conhecidas como “cloud kitchens” ou restaurantes virtuais - não é conhecido do público e os restaurantes, por sua vez, não sabem quem vai consumir seus produtos. Todo o controle de demanda, logística, pagamento e contato com os clientes fica por conta dos aplicativos.

O modelo reflete o que muitos especialistas consideram um dos “nós” da economia compartilhada. No caso do segmento de entrega de refeições, os restaurantes ganham escala, com custo menor que o tradicional, mas perdem o contato direto com os consumidores, o que torna inviável aborda-los diretamente no futuro.

Com avanço dos apps, multiplicam-se as ‘dark kitchens’, cozinhas que funcionam só para os pedidos on-line

Os aplicativos usam os imensos bancos de dados de que dispõem para identificar a demanda por um determinado tipo de refeição em um bairro ou vizinhança da cidade. Então, buscam um restaurante que já usa sua plataforma de entrega e o ajuda a escolher o ponto para instalar a “dark kitchen”.

O investimento fica por conta do restaurante, que na maioria das vezes fecha um contrato de exclusividade com o aplicativo: a cozinha trabalha, a portas fechadas, apenas para atender os clientes daquele serviço de entrega. Em troca, o “delivery” investe no marketing da marca, que só será exposta na sua plataforma, e ajuda a definir menu e preço.

A Rappi (que não entrega só comida) já tem cem “dark kitchens” no Brasil, montadas em “hubs” - estruturas que reúnem várias cozinhas no mesmo espaço - em São Paulo, no Rio, em Belo Horizonte e em Curitiba. O plano da empresa, fundada na Colômbia, é triplicar o número de cozinhas no Brasil até o fim de 2020, chegando a 10 capitais.

O Uber Eats - braço do Uber para entrega de comida - não divulga o número de “dark kitchens” por país. Nos 36 países onde atua, esse tipo de empreendimento soma 5,5 mil unidades. Há três anos no Brasil, o serviço revela apenas que o número de “dark kitchens” brasileiras foi “multiplicado por 15” este ano.

O iFood informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “está sempre atento às tendências e discussões que possam impactar positivamente todo o ecossistema, que incluem consumidores, restaurantes e parceiros de entrega”. A empresa criou uma opção, batizada de Loop, que é a mais barata do aplicativo: O cliente precisa fazer o pedido até 11h para recebê-lo no mesmo dia; caso contrário, a entrega fica agendada para o dia seguinte. Com essa antecedência, o iFood consegue programar os pedidos com restaurantes parceiros ou “dark kitchens” para oferecer refeições a R$ 10. O primeiro pedido do cliente na categoria Loop custa R$ 4,99. “A empresa segue analisando o cenário em busca de oportunidades que estejam alinhadas com sua estratégia de negócios”, informou o iFood.

O mercado de entrega de comida em domicílio está em expansão. Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), a expectativa é que o segmento movimente R$ 15 bilhões no país este ano, com alta de 20% sobre 2018. Para 2020, a previsão é atingir R$ 18 bilhões.

“Cerca de 70% dos restaurantes parceiros são pequenas e médias empresas”, diz Thaís Azevedo, diretora de marketing do Uber Eats. “O custo de montar uma estrutura para atender o público é muito alto. Um restaurante virtual é a chance de o pequeno empresário ampliar o negócio para além de sua região geográfica”, afirma.

De acordo com a executiva, o Uber Eats funciona como uma consultoria: a partir da análise de dados, define a região que necessita de determinado tipo de comida, em determinada faixa de preço, e oferece a ideia a um restaurante parceiro. “O menu precisa ser enxuto, porque quando o cardápio é longo, o cliente olha, olha e desiste”, afirma. O Uber Eats escolhe o lugar para instalação da “dark kitchen” e dá visibilidade à marca no aplicativo.

A empresária Matilde Arruda mantém um contrato de exclusividade com o Uber Eats para a marca Sushi Plus - um sushi mais barato que a média do mercado (entre R$ 1 e R$ 1,50 a unidade), que atende consumidores da Vila Mariana e da região da avenida Luís Carlos Berrini, ambas na zona sul de São Paulo.

São cerca de 24 mil pedidos por mês, contando as duas lojas. Matilde não tem mais restaurante aberto ao público e acaba de lançar mais uma marca com o Uber Eats, a Bownling Delivery, que entrega pokes, uma salada havaiana. “Ter uma ‘dark kitchen’ é bem diferente de um restaurante de rua”, afirma Matilde. “É muito mais funcional; não prioriza arquitetura, design, ponto físico. É uma minifábrica”, diz.

Matilde saiu do negócio da família, que comanda uma rede de temakerias, o Makis Place. Ela diz não se arrepender de ter fechado as portas ao público e pretende abrir mais duas unidades do Sushi Plus em 2020, na zona Leste de São Paulo e no ABC. O contrato com o Uber Eats é renovado anualmente e não prevê multa para nenhuma das partes, se rescindido. A empresária não revela quanto paga sobre o valor da venda para o aplicativo - essa é uma informação que as empresas de “delivery” não costumam divulgar. Segundo as empresas, o valor varia de caso a caso, dependendo da demanda e da localização. Pode ir de 15% a 30% do preço do produto.




“Para o dono do estabelecimento, tornar-se uma ‘dark kitchen’ é uma vantagem, porque tem ganhos de até 10 pontos percentuais na margem da operação, se comparado a manter um restaurante aberto ao público”, diz Ricardo Bechara, diretor de expansão e cofundador da Rappi no Brasil. No modelo de ‘dark kitchens’ proposto pela Rappi, o aplicativo oferece a infraestrutura e o “hub” de cozinhas. Também faz a gestão do espaço ou contrata terceiros para gerir a operação. A meta é encerrar 2020 com 600 cozinhas em até 30 “hubs” na América Latina. Além do Brasil e da Colômbia, a companhia também presente na Argentina, no Chile, México, Uruguai, Peru, Equador e Costa Rica.

A associação dos bares e restaurantes, Abrasel, se preocupa com a centralização das informações nas mãos dos aplicativos. A crítica é que, com as “dark kitchens”, essas empresas controlam integralmente o processo: quem faz o quê, para entregar a quem, em qual região e por qual preço. “Nós já entramos em contato com os três grandes aplicativos e solicitamos que eles compartilhem os dados dos clientes com os restaurantes”, diz Célio Salles, membro do conselho de administração nacional da Abrasel.

Salles ressalta que o “delivery” é uma questão estratégica para o setor: está relacionado ao sistema de pagamento (no iFood, o processamento é feito pelo próprio aplicativo), à tecnologia (que determina volume de pedidos e tempo de entrega) e o comportamento do consumidor, cada vez mais disposto a encomendar o almoço ou o jantar.

Pesquisas da Abrasel identificaram que os aplicativos não estão tirando tanto o público dos restaurantes, e sim substituindo o preparo da comida em casa - o que tende a prejudicar, por sua vez, os supermercados. “Os aplicativos de entrega de comida são fundamentais para o crescimento do setor de alimentação fora do lar”, diz Salles. “Mas defendemos uma relação mais equilibrada com as empresas de “delivery”, que hoje têm o domínio de todas as informações.”

Fonte: valoreconomico