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quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Em 10 pontos, entenda como projeto que trata do Marco Temporal afeta direitos indígenas

Imagem: reprodução

PL aprovado na Câmara que começa a tramitar no Senado vai além do marco e impacta direitos previstos na Constituição.

O projeto de lei (PL) aprovado na Câmara que tenta fincar um marco temporal na legislação brasileira vai muito além de “apenas” estabelecer 8 de outubro de 1988 como data em que os indígenas deveriam estar ocupando suas terras para que elas sejam demarcadas. De volta à pauta, agora no Senado Federal, o PL traz uma série de outros ataques aos direitos territoriais indígenas, na visão de indígenas e especialistas ouvidos pela Agência Pública.

“Inconstitucional, inaplicável, não deveria nem existir uma proposta como essa no Congresso Nacional, que se diz a casa do povo. Afeta a garantia de sobrevivência física, cultural, tradicional e o usufruto exclusivo dos povos nos seus territórios. É muito danoso à sobrevivência”, resume Kleber Karipuna, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Boa parte do projeto é inspirado nas condicionantes que o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu para o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, de 2009, a despeito do tribunal já ter decidido em mais de uma ocasião que as determinações daquele caso específico não são aplicáveis para todas as terras indígenas.

Entre os pontos apontados como mais problemáticos por indígenas e especialistas ouvidos pela Agência Pública estão a proibição da ampliação de terras já demarcadas e a relativização do usufruto exclusivo dos indígenas. O projeto permite que obras relacionadas à “política de defesa e soberania nacional” sejam feitas mesmo sem consulta aos povos afetados. O PL ainda tenta emplacar a permissão para que não indígenas atuem dentro dos territórios em parcerias, enfraquece a proteção aos povos isolados e institui indenização para os ocupantes não indígenas que tenham título de terra.


PL 2.903/23 que trata do Marco Temporal afeta direitos previstos na Constituição
- Imagem: reprodução

No Senado, diferentemente do que ocorreu na casa comandada por Arthur Lira – que pôs o texto em votação em regime de urgência –, o projeto deve ter tramitação normal, passando pelas comissões pertinentes, conforme promessa feita pelo presidente Rodrigo Pacheco. A primeira etapa de discussão está marcada para ter início nesta quarta-feira (15), na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e conta com parecer favorável da relatora, Soraya Thronicke (Podemos-MS). Aprovado na Câmara como PL 490/07, o projeto tramita como PL 2.903/23 no Senado.

Paralelamente ao andamento do projeto no Congresso, os povos indígenas e os ruralistas também aguardam, em lados opostos, o desfecho do julgamento de repercussão geral sobre o tema no STF. Os ministros do tribunal definirão, de uma vez por todas, se a tese do Marco Temporal é constitucional e aplicável a todos os casos.

Por enquanto, o placar está favorável aos indígenas – votaram contra o Marco Temporal o relator Edson Fachin e Alexandre de Moraes, enquanto Nunes Marques divergiu. Moraes, o último a votar até o momento, levantou uma nova possibilidade, falando em indenização pelo valor da terra nua aos não indígenas que possuam título de propriedade. O julgamento está parado após pedido de vista de André Mendonça, que prometeu devolver o caso ao plenário antes da aposentadoria de Rosa Weber, que ocorrerá em outubro.

Nesta reportagem, a Pública passa por cada um dos pontos polêmicos aprovados na Câmara dos Deputados, mostrando os impactos que o projeto de lei pode gerar mesmo se o STF decidir derrubar a tese do marco temporal.

Marco temporal

 O que pode mudar?

 O projeto estabelece que só podem ser demarcadas as terras em que havia ocupação tradicional de indígenas na data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.

Como funciona hoje?

A Constituição não estabelece claramente uma data na qual os indígenas deveriam estar ocupando as terras para elas serem demarcadas. O STF está atualmente discutindo se a tese do Marco Temporal – aplicada em um caso específico julgado no tribunal em 2019 – vale para todos os casos.

Quem pode ser afetado?

Não há um valor exato de quantas terras indígenas poderiam ser afetadas, mas algumas dezenas de processos demarcatórios já foram paralisados judicialmente com base na tese.

Um exemplo de povo que será especialmente afetado são os Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Expulsos de boa parte de suas terras tradicionalmente ocupadas ao longo do século 20, os Guarani e Kaiowá promoveram uma série de retomadas de seus territórios no período pós-Constituição. Caso o Marco Temporal passe a ser a regra, eles não terão direito às terras retomadas depois de 1988.

 Usufruto exclusivo

O que pode mudar?

O projeto estabelece que o usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional, como intervenções militares, expansão da malha viária e exploração de alternativas energéticas estratégicas. Estabelece também que a implementação será feita independentemente de consulta às comunidades envolvidas ou à Funai. O PL estabelece que o poder público tem permissão para instalar equipamentos e construções necessárias à prestação de serviços públicos.

Como funciona hoje?

A Constituição estabelece que as terras tradicionalmente ocupadas são de usufruto exclusivo dos indígenas. E que o aproveitamento dos recursos hídricos e a pesquisa e lavra de minérios em terras indígenas só podem ocorrer com autorização do Congresso Nacional. Além disso, o Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece aos indígenas e demais comunidades tradicionais o direito à consulta livre, prévia e informada em relação às decisões que afetem diretamente seus povos.

Quem pode ser afetado?

Não há estimativa de quantas terras seriam afetadas por este dispositivo, mas um levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) lista ao menos 397 terras indígenas ameaçadas por obras de infraestrutura, como ferrovias, linhas de transmissão, usinas hidrelétricas, portos e rodovias. Boa parte, porém não se enquadra no conceito de “política de defesa e soberania nacional” estabelecido pelo projeto de lei. Além disso, parte considerável das terras citadas no levantamento está na zona de influência das obras e não tem incidência direta da obra em seu território.

Segundo levantamento do InfoAmazonia, há atualmente 111,6 mil km² de terras indígenas onde há requerimentos de mineração, apenas na Amazônia Legal. Parte dessa área poderia ser autorizada com base no PL.

 “Pode abrir margem para muita coisa perigosa, como doenças e epidemias. Os indígenas não são biologicamente preparados para determinada exposição, então o ingresso com mais facilidade em terras indígenas leva risco à saúde dos indígenas. Também abre margem para dizer que o Estado brasileiro precisa ampliar a produção de commodities ou de alimentos ou precisa de divisas em função das exportações pelo agronegócio e abrir as terras indígenas, por interesse público, para produção de grãos.”

 Kleber Karipuna, coordenador da Apib

“Empreendimentos que são construídos próximos ou dentro de terras indígenas afetam substancialmente a cultura, a tradição e até mesmo a sobrevivência desses povos.”

 Não ampliação

O que pode mudar?

O projeto veda a possibilidade de ampliação de terras indígenas já demarcadas.

Como funciona hoje?

Não há nenhum impedimento legal para que uma terra indígena seja ampliada, desde que o reestudo passe pelos procedimentos usuais do processo de demarcação. Alguns reestudos, porém, foram barrados por decisões judiciais em diferentes instâncias.

Quem pode ser afetado?

Os principais afetados serão povos que tiveram suas terras demarcadas (ou seus processos de demarcação iniciados) antes da Constituição de 1988, que só então estabeleceu critérios mais claros. É o caso dos Myky (MT), que tiveram territórios sagrados deixados de fora da demarcação da TI Menkü, de 1987. Eles tentam adicionar 1.460 km² ao território, que atualmente tem 470 km². O governo Dilma aprovou o estudo de identificação da ampliação do território em 2012, mas o governo Bolsonaro anulou a identificação em 2022.

Outro exemplo são os Guarani da TI Jaraguá (SP), a menor terra indígena do país. Localizado na zona oeste da capital São Paulo, o território tem apenas 0,017 km², menos de dois campos de futebol. O território foi demarcado em 1987. Os Guarani pleiteiam uma ampliação de 5,3 km², que já foi declarada e aguarda decreto de homologação.

Suruí Pataxó, cacique e presidente do Conselho de Caciques e Lideranças da Barra Velha

“Onde nós estamos aqui [a área homologada] já tem muita gente. A gente não vai largar os parentes para morar em beira de pista e viver mendigando.”

 Kleber Karipuna, coordenador da Apib

“A população indígena não é estática. O Censo inclusive demonstrou o crescimento dessa população. Uma terra indígena demarcada com o limite muito pequeno e que historicamente era muito maior precisa de ampliação. O PL vai na contramão da garantia dessa sobrevivência física e cultural desses povos.”

Mais questionamentos

O que pode mudar?

O projeto estabelece a possibilidade de questionamentos em relação à demarcação em qualquer fase do processo.

Como funciona hoje?

Atualmente, o período para contestações se inicia na abertura do processo demarcatório e vai até 90 dias depois da publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) pela Funai. Nas fases seguintes, não é possível questionar a demarcação pela via administrativa.

Quem pode ser afetado?

Todos os povos com processo de demarcação em andamento podem ser afetados, já que o dispositivo burocratiza ainda mais o processo demarcatório. Pode afetar inclusive aqueles que já superaram a fase do contraditório e que estão aguardando portaria declaratória ou decreto de homologação.

Juliana Batista, advogada do ISA

“Em nenhum processo administrativo o interessado pode questionar o processo a qualquer momento. Isso não existe na lógica administrativa. Se você tiver respondendo a um processo disciplinar, você vai ter um prazo para fazer sua defesa. Você tem um prazo para questionar uma multa no Detran. Questionar a todo tempo inviabiliza a marcha para frente do processo administrativo."

Não indígenas e benfeitorias

O que pode mudar?

O projeto estabelece que não haverá qualquer limitação ao uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre uma área antes da conclusão do processo demarcatório e do pagamento das indenizações de boa-fé. Além disso, o projeto estabelece que são consideradas de boa-fé e devem ser passíveis de indenização as benfeitorias realizadas até a conclusão do processo de demarcação.

Como funciona hoje?

Atualmente, são consideradas nulas e de má-fé as ocupações (e, consequentemente, as benfeitorias derivadas) que ocorram após a publicação de portaria declaratória pelo Ministério da Justiça ou que, antes disso, tenham ocorrido a despeito do ocupante saber que se tratava de terra indígena.

Quem pode ser afetado?

Caso o dispositivo seja aprovado, pode haver uma escalada nas invasões de terras indígenas que estão em processo de demarcação, já que ele amplia as possibilidades de uso e de indenização de benfeitorias.

Juliana Batista, advogada do ISA

“A constituição garante aos indígenas o direito originário às terras que eles tradicionalmente ocupam. O que que isso significa? Que o direito dos indígenas é anterior a qualquer direito. Todos os direitos posteriores são considerados pela Constituição nulos e extintos. Com essa mudança, o projeto quer dar uma prioridade para o invasor daquela terra, porque a maior parte das pessoas que estão em terras indígenas hoje não são pessoas que têm um título legítimo.”

Indenização

O que pode mudar?

O projeto estabelece que, em caso de justo título de posse ou propriedade em área indígena, a desocupação será indenizável, em razão do erro do Estado.

Como funciona hoje?

A Constituição estabelece que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras” indígenas. Só são indenizáveis, atualmente, as benfeitorias consideradas de boa-fé, não existindo indenização pela desocupação em si.

Quem pode ser afetado?

A medida pode afetar em especial povos que habitam regiões conflituosas e com alto número de ocupantes não indígenas questionando a demarcação, já que a obrigatoriedade de pagamento de indenização cria um entrave burocrático e financeiro para o andamento das demarcações.

Kleber Karipuna, coordenador da Apib

“Isso está muito relacionado a esse debate no STF, do julgamento do Marco Temporal, e o PL abre brechas para essa questão da indenização por terra nua. A gente rechaça completamente essa proposta.”

Questionamento de demarcação

O que pode mudar?

O projeto estabelece que os processos de demarcação ainda não concluídos serão adequados ao disposto na lei. Também estabelece que é nula a demarcação que não atenda os preceitos da lei em questão.

Como funciona hoje?

As centenas de processos demarcatórios já em andamento seguem o estabelecido na Constituição e na Lei 1.775/1996, entre outras normas infralegais.

Quem pode ser afetado?

Todos os processos de demarcação em andamento podem ser afetados, inclusive aqueles que aguardam apenas o registro ou o decreto de homologação, já que terão que se adequar à nova lei e se abrirá espaço para novas contestações. Em última instância, pode possibilitar até mesmo o questionamento de demarcações já concluídas.

Rafael Modesto, advogado do Cimi

“Se você cria uma lei dizendo que o marco temporal é a referência para demarcação de terra indígena, com base nessa lei, o fazendeiro vai para justiça e diz ‘olha, está demarcado, mas essa demarcação não obedeceu ao marco temporal’. Quem vai dizer se a área é indígena ou não vai ser o Judiciário.”

Retomada da área de reservas

O que pode mudar?

O projeto estabelece que, em caso de “alteração dos traços culturais” ou “outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo” que demonstrem que a área indígena reservada não é essencial para a sobrevivência física e cultural para aquele povo, a União poderá retomar a área reservada, destinando-a para a reforma agrária ou outra destinação de interesse público. O dispositivo se aplica apenas a reservas indígenas, que não seguem o mesmo rito do processo demarcatório das terras indígenas tradicionalmente ocupadas.

Como funciona hoje?

Não há nenhuma previsão legal de retomada de terras reservadas a indígenas.

Quem pode ser afetado?

Todas as reservas indígenas podem ser afetadas pelo dispositivo, que não deixa claro o que seria “alteração dos traços culturais”, abrindo margem para questionamentos sobre a identidade de indígenas tidos como “assimilados”.

Rafael Modesto, advogado do Cimi

“Isso é com base na legislação anterior a de 1988, que é aquela do regime tutelar, do integracionismo, do assimilacionismo. Por exemplo, o Estado fez uma reserva para os Kaingang. ‘Ah, os Kaingang agora têm carro, têm celular, então eles perderam os traços culturais’. Isso é preconceito, negacionismo cultural, racismo. Essa previsão do projeto de lei é extremamente nociva, é um desrespeito aos povos indígenas.”

Cooperação e transgênicos

O que pode mudar?

O projeto estabelece a possibilidade de cooperação e de contratação de terceiros não indígenas no exercício de atividades econômicas em terras indígenas. Também passa a permitir o cultivo de transgênicos em terras indígenas.

Como funciona hoje?

De acordo com a Constituição, as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos povos indígenas que nela habitam. O Estatuto do Índio também veda as práticas agropecuárias ou extrativistas por não indígenas dentro dos territórios.

Há casos de “parcerias agrícolas” entre indígenas e não indígenas, mas a prática não é regulamentada. O governo Bolsonaro editou uma instrução normativa relacionada ao licenciamento de atividades agropecuárias em terras indígenas que validava as “organizações mistas” entre indígenas e não indígenas, mas a norma foi revogada pelo governo Lula.

Além disso, a lei atualmente proíbe o cultivo de transgênicos em áreas indígenas.

Quem pode ser afetado?

Todas as terras indígenas, inclusive as já demarcadas, podem ser afetadas em caso de aprovação da medida, que abre margem para pressões de grupos do agronegócio nos territórios indígenas. Também pode ocasionar aumento do desmatamento em territórios indígenas, considerados fundamentais no combate às mudanças climáticas. A permissão para o cultivo de transgênicos é outro sinal da ofensiva do agronegócio sobre as áreas, podendo gerar impactos socioambientais na agricultura multidiversa adotada por muitos povos, bem como impactos ambientais.

 Juliana Batista, advogada do ISA

“Você pega uma entidade não indígena que faz um consórcio com uma entidade indígena para plantar soja. Isso vai levar vários trabalhadores para dentro dessa área. Isso vai fazer com que eles tenham que construir uma estrutura dentro dessa terra para esses trabalhadores. Como que você tira essas pessoas de lá depois?"

 Rafael Modesto, advogado do Cimi

"Se você joga isso [soja geneticamente modificada, por exemplo] em uma terra indígena que é preservada, com recursos naturais que são necessários à sobrevivência do povo, você vai começar a criar um desequilíbrio ecológico. Fuga de animais, morte de animais, de peixes por intoxicação.”

Indígenas isolados

O que pode mudar?

O projeto estabelece que deve ser evitado ao máximo contato com povos indígenas isolados, “salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

Como funciona hoje?

O Estado brasileiro vem seguindo uma política de não contato há mais de três décadas. A política é embasada especialmente em tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, além de normas infralegais internas.

Quem pode ser afetado?

O projeto não deixa claro o que seria uma “ação estatal de utilidade pública”, abrindo margem para contatos com quaisquer povos isolados, que são especialmente vulneráveis a doenças infectocontagiosas.

Juliana Batista, advogada do ISA

“O que é uma ação estatal de utilidade pública? Pode ser qualquer coisa. E aí isso acaba com a política de não contato. Até entidades privadas poderiam fazer contato forçado com esses indígenas. E isso é uma ameaça real à sobrevivência desses grupos, porque os povos isolados não têm a mesma memória imunológica que nós que vivemos na cidade têm.”

Kleber Karipuna, coordenador executivo da APIB

“O PL deixa os povos em isolamento voluntário vulneráveis ao permitir a forçação de um contato com esses povos, na contramão do avanço que a política de proteção desses povos teve nos últimos 30 anos. Anteriormente, a política do Estado brasileiro era de forçar o contato, e a história já nos mostrou que esse tipo de política ajudou a dizimar alguns povos.”

Por Rafael Oliveira e Anna Beatriz Anjos


Fonte: agenciapublica


quarta-feira, 19 de julho de 2023

Syngenta, UPL, Basf: as empresas que mais vendem no Brasil agrotóxicos proibidos na Europa

Imagem: reprodução

491 produtos banidos dessas empresas lá fora são permitidos aqui, um deles associado a casos de câncer de tireoide.

A Agência Públicarevelou o perfil dos agrotóxicos liberados durante o governo Jair Bolsonaro que, fabricados na China, foram banidos na Europa, mas seguem sendo aplicados nas lavouras de soja brasileiras. 

Mas por trás desse perfil existe outro: o das empresas com maior número de produtos que, banidos ou desregulamentados na União Europeia, estão à venda no Brasil. 

É o que mostra um novo levantamento feito com base em dados do governo federal, que, obtido pela reportagem, revela que as grandes empresas beneficiadas são fabricantes de agrotóxicos da China, Índia e Alemanha, conforme mostra o quadro abaixo.



A descoberta se baseia na análise de dados do Agrofit, um banco de informações sobre produtos registrados no Ministério da Agricultura; nos relatórios anuais de vendas de agrotóxicos no país, do Ibama; e nos ingredientes ativos de agrotóxicos sem registro ou com uso banido na União Europeia, mas permitidos no Brasil, até 20 de março de 2023.

O levantamento foi elaborado pela professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Sônia Hess, uma das maiores especialistas no monitoramento de agrotóxicos no Brasil.


“As multinacionais químicas veem aqui como um paraíso, porque podem vender todos os ‘lixos’ que não podem vender em outros países, então elas vêm aqui e despejam… o Brasil é a ‘lixeira’ dos agrotóxicos do mundo – e ainda pagamos caro por isso, com produtos de preços muito altos”, disse Hess à Pública.

 

Uma de suas colegas, a pesquisadora brasileira Larissa Bombardi, outra das especialistas no monitoramento de agrotóxicos no país, divulgou em maio do ano passado um estudo sobre como a indústria internacional influencia decisões e estimula o afrouxamento de leis contra venenos agrícolas no Brasil.

Para Sônia Hess, a aprovação no Brasil de ingredientes ativos irregulares na União Europeia é antiga e ainda persiste no atual governo Lula. “Por que isso ainda acontece? Porque não existe qualquer instrução ou normativa do governo brasileiro para evitar a aprovação de produtos banidos em outros países”, disse ela.

Chinesa Syngenta encabeça a lista

O grupo Syngenta encabeça a lista dos que mais podem vender no Brasil agrotóxicos irregulares na União Europeia. Fundado na Suíça, mas comprado em 2017 pela estatal chinesa ChemChina, o conglomerado tem autorização de venda para 233 produtos proibidos na Europa, considerando sua subsidiária aqui no país e também as filiais da Adama, controlada pelo mesmo grupo.

Há produtos da Syngenta e da Adama que contêm, por exemplo, o ingrediente mancozebe – associado a casos de câncer de tireoide. A substância compõe, entre outros, a mistura do inseticida Comissario, liberado em 2019 pelo Ministério da Agricultura mesmo avaliado como “extremamente tóxico” e “altamente perigoso ao meio ambiente”.

O banimento de agrotóxicos à base de mancozebe na União Europeia ocorreu em 2021. Após sua proibição, houve pelo menos quatro reuniões do grupo chinês com o Ministério da Agricultura do governo Bolsonaro por conta desse ingrediente, conforme a agenda oficial do governo, consultada pela Pública. À época, a pasta estava sob o comando da atual senadora Tereza Cristina (PP-MS), que pertence à bancada ruralista em Brasília.

Representantes do grupo chinês chegaram a se reunir com o ex-secretário de Políticas Agrícolas do ministério Guilherme Soria Bastos Filho, em 13 de julho de 2021, para pedir uma “redução tarifária” de um produto à base de mancozebe.

Outra responsável pela liberação de agrotóxicos no país, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também manteve uma série de reuniões com representantes do conglomerado chinês.

Foram pelo menos dois encontros com funcionários da subsidiária Adama e outros 22 com os da matriz, Syngenta, conforme consulta à agenda oficial da Anvisa. Em 23 de abril de 2021, por exemplo, representantes da Syngenta debateram o “cenário regulatório para agrotóxicos” no Brasil com a diretoria responsável pela aprovação de novos produtos no país.

Meses depois, em 15 de julho, novo encontro, dessa vez para falar sobre “oportunidades para melhorar a inserção de novos ingredientes ativos” de agrotóxicos com a mesma diretoria, então ocupada por Cristiane Rose Jourdan Gomes – que relatou ao jornal Estadão a existência de “uma influência enorme das indústrias, uma influência enorme do Congresso” na Anvisa.


Syngenta teria tentado esconder um insumo altamente poluente de uma vistoria do
Ibama - Imagem: reprodução

O mesmo conglomerado chinês foi acusado recentemente de burlar fiscalizações do governo brasileiro. Segundo matéria de maio de 2023 do portal UOL, a Syngenta teria arquitetado maneiras para esconder um insumo altamente poluente de uma vistoria do  Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O UOL aponta também que o grupo teria acrescentado a substância poluente a três de seus produtos, em quantidades três vezes superiores ao permitido pelo Ibama, Anvisa e Ministério da Agricultura.

Procurada pela Pública, a Syngenta afirmou que “sempre teve um diálogo constante com autoridades, governos, órgãos reguladores, meios de comunicação e sociedade” e que o uso de seus agrotóxicos “é regido por mandatos de órgãos reguladores em todo o mundo”.

Quanto à denúncia sobre supostos métodos para burlar a fiscalização, o grupo afirma: “uma inspeção conduzida pelo Ibama na fábrica de Paulínia no início de novembro de 2021 apontou uma falha no processo produtivo de lotes específicos de Engeo Pleno S, de Karate 250 e Karate 50. O Ibama aplicou multa de aproximadamente R$ 4,5 milhões. A Syngenta e o Ibama seguiram o procedimento regular de conciliação proposto e aprovado pelo próprio Ibama, de acordo com a legislação pertinente. A empresa pagou os valores indicados e acordados. Posteriormente, o Ibama decidiu reabrir o processo administrativo, anulando unilateralmente o acordo celebrado e já quitado”.

Governo Bolsonaro discutiu “aceleração de registro” de agrotóxicos com indiana UPL

A subsidiária da UPL, fabricante de agrotóxicos indiana que anuncia lucros de mais de US$ 5 bilhões por ano, também se destaca no levantamento obtido pela Pública. No Brasil, a UPL pode vender 136 produtos com substâncias banidas ou desregulamentadas na União Europeia.

Em 8 de julho de 2021, a UPL discutiu com o governo Bolsonaro a “aceleração de registro” de seus agrotóxicos no Brasil, segundo a agenda da Agricultura.

Dali em diante, as conversas da UPL com o Executivo se mantiveram, e houve um encontro entre um dos diretores da matriz indiana com o alto escalão da Agricultura do governo Bolsonaro. Em 19 de maio de 2022, houve uma reunião presencial do então ministro Marcos Montes com uma comitiva da Índia, incluindo o diretor-executivo da UPL naquele país, Vikram Shroff. Porém a agenda oficial não detalha a pauta do encontro.

A Pública tentou contato com o grupo UPL para saber detalhes sobre o pedido de “aceleração de registros” dos seus agrotóxicos e suas tratativas com o governo, mas não houve retorno. A reportagem será atualizada caso a fabricante indiana se manifeste.

Alemãs Basf e Bayer entre as mais beneficiadas

A terceira empresa com maior número de agrotóxicos à venda aqui no país, mas proibidos na Europa, é alemã: a gigante do setor químico Basf, com 122 produtos disponíveis, ao todo.

Tanto a Basf quanto sua compatriota Bayer – outra das grandes beneficiadas, com 50 agrotóxicos proibidos na União Europeia, mas à venda no Brasil – estiveram na berlinda durante o governo Bolsonaro. Segundo estudo do Greenpeace publicado em 2020, as duas empresas usavam o país como “depósito” para seus agrotóxicos barrados na Europa, o que inclui, por exemplo, produtos à base de fipronil, associado à morte de abelhas.

Já a ONG Amigos da Terra revelou, em outro estudo, que a Basf, a Bayer e a chinesa Syngenta teriam gasto juntas mais de R$ 10 milhões com lobistas em Brasília – como o Instituto Pensar Agro, cérebro e fonte de recursos financeiros da bancada ruralista no Congresso Nacional. O objetivo, segundo a ONG, era influenciar decisões do poder público para aumentar o acesso das fabricantes de agrotóxicos ao mercado brasileiro.

A fabricante alemã de agrotóxicos também se reunia com membros do governo Bolsonaro. Até julho de 2022, a Basf acumulava pelo menos 26 reuniões oficiais na agenda, contando somente o Ministério da Agricultura.


Empresas teriam gasto juntas mais de R$ 10 milhões com lobistas em Brasília
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Em 2019, por exemplo, representantes da Basf se reuniram com o ex-diretor do Departamento de Sanidade Vegetal e Insumos Agrícolas do Ministério da Agricultura Carlos Goulart para discutir a “regulamentação de defensivos [agrotóxicos] na UE [União Europeia]” – como mostra a agenda da pasta.

Em 2020, junto com a Bayer, a Basf foi ouvida no processo de escolha de um membro para a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) – responsável pela aprovação de organismos geneticamente modificados no Brasil.

Menos de um mês após a publicação pelo governo de uma portaria para indicação de novo membro para a CTNBio, as companhias alemãs reuniram-se novamente com Goulart – do mesmo setor responsável pela indicação, como revelado pelo observatório De Olho nos Ruralistas.

A Pública tentou contato com as empresas alemãs do setor de agrotóxicos, mas não houve retorno. Caso respondam, o texto será atualizado. 

Por Caio de Freitas Paes


Fonte: apublica.org


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Flávio Dino diz já ter novidades no caso Marielle: “Vamos chegar a uma solução do crime”

Imagem: reprodução

Ministro da Justiça falou à Pública ainda sobre narcogarimpo, extremismo político, bolsonarismo e violência nas escolas.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, demonstra ter cada vez mais certeza da solução de um dos crimes mais emblemáticos da história recente do Brasil, o assassinato da ex-vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018.

Em entrevista exclusiva concedida à Agência Pública no fim de junho em Brasília, ele trata o caso com o que definiu como “otimismo moderado”, em decorrência do tempo passado após o crime e da destruição de provas. Cauteloso e sem adiantar informações da investigação sigilosa, Dino garantiu ter “novidades” sobre o caso e disse: “Acredito que vamos chegar a uma solução do crime”.

O ministro tratou também de diversos temas ao longo da entrevista, como narcogarimpo, policiamento da Amazônia, extremismo político e violência em escolas. Sobre a inelegibilidade do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, ele diz que foi uma ação firme do Judiciário para interromper a onda de ataques ao sistema eleitoral, mas, realista, diz que ainda é cedo para se considerar controlada a sanha golpista contra a democracia. “Há uma luz amarela no semáforo da história: o extremismo político está vivo”.


“Deixar [Bolsonaro] inelegível é muito importante, porque ele é um facínora, mas é suficiente? Não. O extremismo político ainda encontra raízes muito fortes no Brasil: o vemos na cultura do ódio, da desinformação, do preconceito e da violência”, ressalta.

 

Passados mais de seis meses da invasão do Palácio do Planalto, Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro diz que a “personalidade despótica, autoritária e patológica de Bolsonaro” une os atentados promovidos entre o resultado da eleição, em 30 de outubro passado, ao caos do 8 de janeiro. Para Dino, não há dúvidas de que o ex-presidente está no centro da tentativa de golpe.


“Havia o ajudante de ordens [Mauro Cid], o ex-ministro Anderson Torres, outras pessoas muito ligadas a ele. É possível inferir, também por sua personalidade despótica, autoritária, que de algum modo ele orientava – ou que pelo menos compactuava, autorizava”, afirma o ministro, que ainda define o ex-presidente como “um golpista fracassado”.

 

Para o ministro, o atentado de 8 de janeiro serviria para criar um clima de instabilidade política e anomia institucional, forçando a cúpula militar a aderir ao golpismo. “A ideia deles era que o 8 de janeiro fosse um estopim, com efeito dominó em outras manifestações ao longo do Brasil, para tentar mostrar que o novo governo não tinha condições de gerir o país”, afirma.

Segundo Dino, ao sair da eleição com 49% dos votos, Bolsonaro tinha “uma base social razoável”, mas não o apoio internacional  nem da elite empresarial brasileira – condições que, em 1964, permitiram aos militares depor o ex-presidente João Goulart. “Daqui muitos anos, quando forem abertos os arquivos de 2022 do governo dos Estados Unidos, vão encontrar o que levou as Forças Armadas a não se engajarem no golpe”, disse o ministro.

Flávio Dino garantiu que o governo vai fortalecer sua presença na Amazônia, com a criação de uma companhia de policiamento ambiental, formada por mais de mil homens da Força Nacional, cuja finalidade é fiscalizar, intensificar operações e combater as organizações criminosas de inspiração mafiosa – que, segundo o ministro, se infiltraram na política, nos garimpos e demais atividades ilegais que cresceram no vácuo de fiscalização deixado pelo governo Bolsonaro.

Dino assegurou que o governo Lula retomará as demarcações de terras indígenas, interrompidas por Bolsonaro, por meio de decisões conjuntas entre os ministérios dos Povos Indígenas, da Justiça e Segurança Pública e da Casa Civil.

Contra o marco temporal defendido pelos ruralistas, o ministro se alinha à ideia do ministro do STF Alexandre de Moraes, que, independentemente do que o Congresso decidir, sinalizou uma solução intermediária ao conflito – sem marco, mas respeitando a peculiaridade de regiões densamente habitadas, como cidades consolidadas. Leia, a seguir, a entrevista.

Quais os reflexos da inelegibilidade de Bolsonaro?

A extrema direita brasileira perde força, perde seu principal porta-voz, o que sem dúvida altera certos desdobramentos no plano da política. Destaco, sobretudo, os aspectos constitucionais e legais com a consagração de uma diretriz jurisprudencial no Brasil sobre a chamada desinformação. Juridicamente, nós temos uma rejeição muito clara e, portanto, a declaração da abusividade da conduta de quem no processo eleitoral espalha, deliberadamente, desinformação como uma ferramenta para obter votos e hipotéticas vitórias eleitorais. É um precedente muito relevante para o futuro, no sentido de que um dos principais desafios da democracia contemporânea recebe uma resposta jurídica.

A inelegibilidade interrompe o extremismo de direita?

Espero que, se não paralise definitivamente, pelo menos atenue. Com a revolução científico-tecnológica, levando, por exemplo, ao incremento das ferramentas de inteligência artificial, nós temos tendencialmente o agravamento do problema da indústria da desinformação nos processos eleitorais. Isso distorce muito fortemente a legitimidade do processo eleitoral. O que o TSE afirmou é que há uma disposição firme de fazer esse “breque” contra a manipulação das consciências dos cidadãos. O TSE afirmou que espalhar desinformação é uma fraude eleitoral e, portanto, quem pratica esse tipo de conduta deve ser punido.

Passados mais de seis meses, o que dizem as investigações sobre os responsáveis pelo 8 de janeiro?

Uma investigação dessas é como se você pegasse um quebra-cabeça, daqueles de mil peças, e jogasse numa praia, com vento forte. Tem um período que você tem que recolher as pecinhas, mas grande parte desse quebra-cabeça já está montada.

Houve os perpetradores dos atos violentos, as pessoas que cercaram quartéis, que vieram pra cá; a via organizadora e, sobretudo, segmentos empresariais locais, que davam carne, água, apoio material, banheiro químico, barracas etc., em todo o país. O financiamento era, sobretudo, de segmentos empresariais locais, do agro e comerciantes, também de gente ligada a esse mundo do armamentismo, que financiavam isto.

Havia os incitadores, que estavam, sobretudo, nos segmentos armados – membros da ativa e da reserva das Forças Armadas, das forças policiais, mas também CACs [Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores] e proprietários de clube de tiro, de lojas de armas e assim sucessivamente. Eram segmentos armados da sociedade, com grande engajamento e um comando político mais ou menos organizado, muito próximo do Bolsonaro.

Jair Bolsonaro participou?

Só posso falar, pelo cargo que eu exerço, a partir de provas. Nesse momento eu tenho alguma prova cabal de que o Bolsonaro, direta e pessoalmente, participou do golpismo? Não tenho. Agora, é possível deduzir isso logicamente, no plano argumentativo? Sim, claro. Por que digo que é possível deduzir isso no plano argumentativo? Porque todas as pessoas que, de algum modo, aparecem na cena eram muito ligadas a ele. Havia os ajudantes de ordem, o ex-ministro Anderson Torres, pessoas muito ligadas a ele. Por dedução, é possível inferir, também por sua personalidade despótica, autoritária, que de algum modo ele orientava – ou pelo menos compactuava ou autorizava [o golpe].


Para Dino, não há dúvidas de que o ex-presidente Bolsonaro está no centro da tentativa de
golpe em 8 de janeiro - Foto: reprodução

É possível afirmar que o extremismo está sob controle?

Sou obrigado a chamar atenção para uma luz amarela no semáforo da história: a luz amarela é o extremismo político, que está vivo. Deixar o Bolsonaro inelegível é muito importante, porque ele é um facínora, um déspota. Agora, isso é suficiente para dizermos que o extremismo político foi superado no Brasil, o extremismo de direita? Não, não é.

Mesmo que você veja uma luz verde, poderosa, no sentido de haver uma continuidade da construção democrática do Brasil, é preciso olhar numa perspectiva lateral, olhar esse alerta – que o extremismo político ainda encontra raízes muito fortes no Brasil. Vivemos na cultura do ódio, da desinformação, do preconceito, da violência. Então, nós temos sinais sociais disto.

Caso dos ataques nas escolas?

Os ataques nas escolas são um sinal muito poderoso de que a cultura da violência está muito forte no Brasil. Vejamos o que aconteceu recentemente, naquele brutal ataque a uma escola no Paraná: uma pessoa foi lá e apertou o gatilho, o que já é terrível, mas havia outras pessoas estimulando, apoiando, filmando, transmitindo a morte de jovens. Isso mostra a força da cultura da violência, até porque praticamente todas as semanas – nessa, inclusive – nós temos prisões de nazistas e neonazistas.

O controle de armas avançou?

Tivemos dois decretos, teremos mais um nas próximas semanas, diminuindo mais uma vez o acesso a armas e munições, criando regras mais rígidas para o porte de arma, para abertura de clubes de tiro, acabando com os clubes de tiro 24h – que estavam funcionando como uma fachada para o porte de arma clandestino. Bolsonaro passou a permitir o porte em trânsito com a arma municiada, mas agora estamos voltando, para que seja apenas “desmuniciado”.

O clube funcionava como álibi: o cidadão era pego numa blitz, com a arma municiada. Ele dizia: “Não! Estou indo no clube de tiro, por isso que a arma está municiada”. É por isso, também, que os clubes de tiro passaram a funcionar 24h, o que é esdrúxulo. Alguém imagina uma pessoa, às 3 horas da manhã, que vai dar tiro em um clube? Será publicado um decreto bastante amplo, acabando com a autodeclaração de necessidade, algo criado pelo governo Bolsonaro. Que nada mais era que uma espécie de presunção de necessidade, a partir de autodeclaração.

Qual o resultado das operações contra o excesso de armas?

Veja que, em menos da metade do ano de 2023, foram apreendidas mais armas pela Polícia Federal do que em todo o ano de 2022, o que mostra exatamente essa carência de fiscalização das atividades ilegais, de um modo geral. Isso valia para garimpo legal, para invasão de terrenos, para armamentismo e clubes de tiro. Ninguém fiscalizava nada porque tinha gente ganhando dinheiro com isso.

Estamos falando de bilhões de reais, bilhões nas atividades, chamemos assim, legais das lojas e clubes de tiro, mas também no comércio clandestino de armas e munições para organizações criminosas. O que essa gente estava fazendo? Alugando armas para o PCC [Primeiro Comando da Capital], para o CV [Comando Vermelho].

Fizemos uma operação, que inclusive envolveu uma parte nos Estados Unidos, contra lojas [de armas] na Baixada Fluminense, e assim descobrimos quase 2 mil armas ilegais que iam, exatamente, para o crime organizado. Com essa dupla face, o negócio legal, visível, como esse que falamos – da loja, do clube de tiro –, também havia o negócio ilegal, de comercialização e barateamento no acesso a armas de fogo para quadrilhas.

O maior incentivo para as organizações criminosas do Brasil foi esse armamentismo irresponsável, que fortaleceu o poder das organizações criminosas, barateou o acesso a armamento por meio da aplicação da lei da oferta e da procura: quanto mais produtos há no mercado, obviamente mais o preço cai.

O senhor mandou abrir um novo inquérito na PF sobre os assassinatos de Marielle Franco e de Anderson Gomes, as investigações já avançaram?

Trabalho sempre com um conceito de “otimismo moderado”. Otimismo porque temos um trabalho sério, uma equipe da PF trabalhando só no caso Marielle há três meses. Isso me dá esperança. Mas por que minha moderação? Porque se passaram cinco anos. Imagens, impressões digitais, indícios de um modo geral se perderam.

Se tivesse imagens daquele dia do assassinato [de Marielle]… Imagine a quantidade de câmeras no centro do Rio de Janeiro. Rapidamente se chegaria aos assassinos, ao carro [usado no crime], de onde ele veio, de onde saiu, qual percurso fez, isso com base na ERB [antena de telefonia celular] dos celulares… você chegaria rapidamente [aos culpados]. Hoje a tecnologia é amiga da investigação, não existe crime perfeito. Mas, infelizmente, não temos mais os dados da ERB, não temos as [imagens das] câmeras, e essa é a razão da minha moderação. Não existe crime perfeito, mas infelizmente não temos mais os dados completos.

Mas existe algo palpável, algum fato novo?

Temos novidades, sim. Não tenho uma previsão [de quando será divulgado], porque há coisas que faço questão de não saber, mas, sim, as equipes me informaram que conseguiram avançar… até onde, não posso dizer. Teremos de esperar. Mas acredito que vamos chegar a uma solução do crime, sim.


“Acredito que vamos chegar a uma solução do crime”, afirma o ministro sobre o caso
 Marielle Franco - Foto: reprodução

Mudando de assunto, como o crime organizado se entrelaça às atividades ilegais na região da Amazônia?

Nós temos hoje no Brasil algo muito além das quadrilhas do tipo tradicional: temos organizações de tipo mafioso, com face legal, operadas por empresas e que estão em vários negócios visíveis — um prédio residencial, uma imobiliária, revenda de automóveis etc. E ela também penetra na política. São organizações tipo máfia que se implantaram na Amazônia, exatamente pela ausência estatal, entre as quais está o PCC.

É o chamado narcogarimpo, uma atividade que demanda grandes investimentos, não é mais aquela imagem [do garimpo] de Serra Pelada, dos anos 1970 e 1980. Desde os episódios do Vale do Javari, do assassinato do Dom Phillips e do Bruno Pereira, isso ficou bem evidente. Você tem organizações criminosas atuando na Amazônia em atividades aparentemente legais – como venda de aviões, barcos, comida, combustível etc… É o avanço do narcogarimpo, na prática.

Como resolver?

Há dois problemas muito fortes na Amazônia. Primeiro, há a questão social, pois a Amazônia tem os piores indicadores sociais do Brasil. Você não enfrenta o narcogarimpo, narcotráfico, a caça ilegal, a exploração ilegal de madeira e a pesca ilegal só com policiamento. Se você não melhora as condições sociais do povo amazônico, como você vai dizer para o cara para deixar de ser “soldado” do narcogarimpo, ganhando R$ 3 mil por mês, para oferecer um Bolsa Família de R$ 700? O Bolsa Família é bom, mas apenas como incentivo para as condições brasileiras, claro. Em termos de incentivo econômico, é claro que ele se sente mais atraído [pelo garimpo] porque não há alternativa.

É necessário elevar as condições de vida do povo da Amazônia como uma prioridade brasileira relativa à proteção ao meio ambiente. É cruzando sustentabilidade ambiental com sustentabilidade social. E o segundo problema é exatamente essa ampliação do poder bélico dessas quadrilhas criminosas. Isso realmente exige a qualificação da presença estatal na Amazônia.

Como o governo federal pode fortalecer as ações contra crimes ambientais na região?

Formulamos um programa, que apresentamos ao BNDES, uma proposta de estruturar o trabalho, com policiamento ambiental na Amazônia e uma coordenação nacional – que, hoje, não existe.

Inicialmente, estamos dimensionando R$ 1,3 bilhão, porque, com isso, conseguiremos implantar uma companhia de policiamento ambiental da Força Nacional numa cidade da Amazônia, ainda a ser decidida e ainda sem um efetivo fechado, mas certamente seria algo em torno de mil policiais.

Implantaríamos a companhia de policiamento ambiental da Força Nacional e daria para comprar equipamentos para, em cada estado, ter um pelotão desta companhia, cada um com um helicóptero, com efetivo, armamento e, portanto, com uma coordenação regional. Também compraríamos equipamentos para a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal.

Nós já criamos a diretoria de Amazônia e Crimes Ambientais na Polícia Federal. Foi uma das decisões mais certas que a gente tomou. Saímos, em 2022, de algo em torno de 30 operações da Polícia Federal na Amazônia contra o garimpo ilegal para mais de 300 neste ano. Em cinco meses destruímos mais de 300 garimpos, centenas de balsas, e por aí vai. Hoje temos um delegado da Polícia Federal só dedicado [ao combate] aos crimes ambientais. Foi uma das decisões mais certas que a gente tomou. Todos os indicadores de atuação da PF na Amazônia melhoraram, sem exceção, inclusive as condições da água, com a diminuição de mercúrio.


Governo pretende fortalecer sua presença na Amazônia com a criação de uma companhia
de policiamento ambiental - Foto: reprodução

Quais os resultados das ações do Conselho Nacional da Amazônia, gerido no governo anterior pelo ex-vice presidente e atual senador Hamilton Mourão?

Não funcionou aquilo lá. Não funcionou porque, primeiro, me parece que se gastou muito em GLO [operações de Garantia da Lei e da Ordem, sob comando estritamente militar] ambiental, eu acho, mas não sei nem para onde foi esse dinheiro, para ser franco. Quer dizer, o Conselho da Amazônia [Legal, CNAL], eu não sei como está hoje, não sei como ficou. Tinha aquela [operação] Verde Brasil, uma GLO ambiental, realmente se gastou [verba pública] naquilo. Mas ficou algum legado? Não, não tem. Nem o campo político deles [bolsonaristas] acreditava naquilo. Não tinha articulação com os estados e nem comando político, que dizia o contrário [da política ambiental]: “toquem fogo”, dizia, “matem, comprem armas”. É claro que, naquele ambiente, nem que ele [Hamilton Mourão] tivesse boa vontade, era impossível alguma coisa dar certo.

O bolsonarismo ainda está entranhado nas instituições?

Ainda temos problemas [com bolsonaristas] na PF, na PRF, nas Forças Armadas, sim, mas temos um comando que no dia 1º de janeiro não tínhamos, nem no dia 2, nem no dia 3, nem no dia 8 de janeiro. Quer dizer, fomos ocupando o comando das instituições, apesar das dificuldades, das resistências. Ocupando com uma cultura institucional, assim, de respeito ao direito das pessoas, e estamos avançando nesse caminho.

No governo anterior, uma secretaria do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a Seopi, foi acusada de espionar oponentes. O que o senhor encontrou dessa estrutura?

O que chegou na minha mão, antes do dia 8 de janeiro, foi um relatório da PF. Depois, apareceu que alguns órgãos regionais desse sistema de inteligência, que era a Seopi [Secretaria de Operações Integradas], hoje chamada de Diop [Diretoria de Operações Integradas e Inteligência], que fica dentro da Senasp [Secretaria Nacional de Segurança Pública]. Eram alguns relatórios regionais, do Norte e do Nordeste, falando em mobilizações, caravanas, acampamentos etc.

Hoje, nós temos, de ilegal, a identificação daquele documento que levou à operação da Polícia Rodoviária Federal no segundo turno [em regiões indicadas por pesquisas eleitorais como redutos do então candidato a presidente Lula]. Este documento foi produzido aqui, dentro do Ministério da Justiça. O BI [Business Intelligence] do Ministério foi utilizado para extrair dados sobre desempenho de candidatos, para concentrar operações da Polícia Rodoviária Federal [em locais onde Lula havia tido melhor desempenho no primeiro turno] no segundo turno da eleição. Isso foi feito aqui no Ministério da Justiça. Houve, de fato, essa produção de dados. Agora, coisas pretéritas, ilegais de um modo geral, eu realmente nunca tive conhecimento. Além disso, foram feitas outras, uma muito conhecida, aquela história dos policiais antifascistas. Fora isso, realmente não ficaram, digamos, dados materiais dessa atuação.

Houve espionagem contra movimentos sociais ou oponentes do governo anterior?

Até hoje eu não posso afirmar nem que sim nem que não, porque até hoje não chegou nada na minha mão nesse sentido. Pode ser que, mais na frente, chegue algo, mas nunca houve isso.

Como o Ministério da Justiça controla movimentos suspeitos de terrorismo?

Aqui no Ministério da Justiça, não fazemos esse tipo de trabalho, de modo organizado, não mais — e nem a PF. Hoje, nossa orientação com a PF é investigação de crime, inquérito, não tem nenhum tipo de trabalho de inteligência. Aqui no Ministério, isso tudo, hoje, está praticamente desativado. A Polícia Judiciária não é agência de inteligência.

Existe o informe de inteligência? Não existe. Existe o da Abin [Agência Brasileira de Inteligência], que hoje eu recebo como devo receber: por escrito, no envelope, que é tarefa da inteligência. A inteligência que existe aqui é a de segurança pública. Não é uma inteligência “política”. A inteligência de segurança pública aponta que será feita uma operação contra o garimpo ilegal, com levantamento de informações, e por aí vai. Mas inteligência “política” é zero, aqui é zero. Não há no ministério nem na PF.

Qual a sua posição sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas?

A meu ver, a instância que vai definir isso é o Supremo Tribunal Federal. Acho que a ideia de marco temporal não passa.

Mesmo que o Congresso aprove a regra?

O Supremo vai prevalecer. Se o Supremo disser, é o Supremo quem está interpretando a Constituição. Então, se você vota uma lei, é óbvio que essa lei não é maior do que o Supremo fixar. Se passar no Congresso, não terá um caráter superior à interpretação que o Supremo vier a fixar sobre o artigo 231 [relativo aos direitos dos povos indígenas].


Dino assegura que o governo Lula retomará as demarcações de terras indígenas
- Foto: reprodução

Como o governo deve encaminhar as demarcações?

Teremos reunião no ministério, com a Casa Civil, o MPI [Ministério dos Povos Indígenas], MGI [Ministério da Gestão e Inovação], para discutir a nova regra. Antes era aqui, depois passou para o MPI, agora veio a lei e voltou para cá, mas não queremos, de forma alguma, que o MPI fique sem função no âmbito das demarcações. A ideia hoje vigente é criar uma espécie de portaria conjunta, minha com o MPI, com a Casa Civil, eventualmente, que regule o processo de demarcação, via Funai e MPI. Aqui, fazemos uma análise da legalidade, da compatibilidade com os procedimentos legais, e mandamos para o presidente [Lula]. A tendência é essa: conversamos bastante, eu e Sônia [Guajajara]. Não passa pela minha cabeça a ideia que o Ministério da Justiça esvaziará o MPI. Por força da lei, por uma decisão do Congresso, participaremos também [das demarcações], mas acredito que o nascimento dos processos de demarcação deve continuar no MPI.

O agro quer o marco temporal. Qual o modelo de demarcação o senhor defende?

Acho que o voto que o ministro Alexandre de Moraes apresentou é um voto adequado, porque afasta o marco temporal – ele diz que não existe esse marco, de 1988 –, mas ao mesmo tempo aponta caminhos intermediários, adianta algumas orientações, que me parecem razoáveis porque há o cotejo de direitos. Uma coisa é um território na Amazônia em que houve uma grilagem, outra, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, são áreas ocupadas por cidades inteiras. Você vai remover essas cidades? Ele [ministro Moraes] diz: “Não, pode haver algum tipo de compensação negociada, pactuada”. Então, acho que é uma boa saída, justa, pois preserva também os direitos que, às vezes, são centenários. Às vezes você tem pessoas cujas famílias estão morando [na área originalmente indígena] há 100, 200 anos, então não tem como retirar. Inclusive, o caso em julgamento no Supremo refere-se a pequenos agricultores de Santa Catarina, contra a demanda dos indígenas Xokleng.


Fonte: agenciapublica.org


terça-feira, 4 de julho de 2023

Hospital da turma de Arthur Lira recebeu 1 bilhão de reais em sete anos

Imagem: reprodução

E, no entanto, a instituição se afunda em dívidas e não tem dinheiro nem para pagar os salários.

O tradicional Hospital do Açúcar, em Maceió, criado na década de 1950 por usineiros e produtores de cana, passou por uma ampla reforma e reabriu suas portas em abril de 2019 com um novo nome: Hospital Veredas. É um prédio imponente, localizado em frente a um parque, com 264 leitos. Mas o que mais chama a atenção é seu enorme poder de atrair verbas públicas, sobretudo a partir de 2016. Em maio daquele ano, dias depois do afastamento da presidente Dilma Rousseff, o PP, o partido de Arthur Lira, assumiu o controle do Ministério da Saúde. Daí em diante, o Hospital Veredas recebeu uma quantia fabulosa: quase 1 bilhão de reais. Em repasses federais, foram 287 milhões. Em repasses estaduais, 271 milhões. E, em repasses municipais, mais 413 milhões. Com tanto dinheiro no cofre, acabou recebendo mais recursos do que a própria Santa Casa de Maceió, que atende mais pacientes do que o Veredas.


“É um montante altíssimo”, espantou-se José Wilton da Silva, presidente do Conselho Estadual de Saúde de Alagoas. Ele já adiantou que fará uma análise detalhada dos repasses ao hospital e, se for o caso, vai propor uma auditoria nas contas do Veredas. “Precisamos saber por que o Veredas recebe mais do que os outros hospitais e por que tem uma dívida há muitos anos incontrolável.” O momento solene de abertura da torneira federal que começou a jorrar dinheiro para o Veredas em 2016 só aconteceu no ano seguinte, no dia 26 de julho de 2017.

 

Naquela data, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, PP do Paraná, esteve em Maceió para uma visita ao hospital, que ainda se chamava Hospital do Açúcar. Ao ministro, juntaram-se o deputado federal Arthur Lira e seu pai, o então senador Benedito de Lira, ambos do PP. Em uma solenidade, a trinca anunciou a liberação de 6 milhões de reais para o hospital. “Nós estamos muito felizes que, realmente, o Ministério da Saúde volta os olhos para essa casa, e com o apoio integral do senador Benedito de Lira e do deputado Arthur Lira”, festejou o presidente do hospital, o médico Edgar Antunes Neto. Era o dinheiro para a reforma que, dois anos depois, estaria concluída.

Antes de partir da solenidade em Maceió a bordo de um avião da FAB, o ministro Ricardo Barros fez questão de dizer que a liberação do dinheiro atendia uma demanda dos Lira. Num vídeo, Barros deixou gravado que a visita tinha sido “interessante” e agradeceu a “insistência” do deputado e do senador pelos recursos. “Liberamos 6 milhões de reais para custeio do Hospital do Açúcar a pedido do deputado Arthur Lira, do senador Benedito de Lira. É muito importante que nós possamos recuperar o Hospital do Açúcar para um atendimento cada vez melhor da saúde de todo o povo de Alagoas”, destacou. Depois disso, veio o derrame de dinheiro público, que, só em verba federal, totalizou 287 milhões de reais.

Entre os hospitais filantrópicos de Maceió, o Veredas é o maior em número de leitos e de funcionários, superando a Santa Casa e o Hospital Sanatório. No entanto, atende menos gente e, portanto, tem custo menor. Os atendimentos ambulatoriais do Veredas são bastante inferiores aos da Santa Casa, por exemplo. Entre 2020 e 2022, a Santa Casa teve uma média anual de 378 mil atendimentos, contra apenas 67 mil do Veredas. Seus custos também são muito menores que os da Santa Casa. No ano passado, o custo dos atendimentos da Santa Casa registrados no SUS chegou a 32 milhões de reais, enquanto o do Veredas não passou de 7 milhões. Além dos atendimentos e dos custos, as internações também são menores. A Santa Casa fez 15 904 internações entre 2021 e 2022, contra 10 720 do Veredas. Os gastos do Veredas com internações ficaram abaixo até do que as despesas de duas instituições com estruturas até menores, como o Hospital da Mulher e o Hospital Universitário.

Mesmo assim, o Veredas é o destino final de muito dinheiro. Nos últimos sete anos, o PP foi estrela no Ministério da Saúde. Estava no comando da pasta no governo Michel Temer e, durante o governo Jair Bolsonaro, teve forte presença nas estruturas internas do ministério, sobretudo nos setores que liberavam verbas. Em junho de 2021, o PP teve uma baixa no Ministério da Saúde: o então diretor do Departamento de Logística, Roberto Ferreira Dias, indicado pelo Centrão, foi demitido sob suspeita de pedir propina na compra de vacina contra a Covid-19. Mas o domínio do Centrão prevaleceu em cargos estratégicos e só começou a perder espaço com a posse do presidente Lula e a nomeação da ministra Nísia Trindade, que comandou por seis anos a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Por isso, o Centrão – no qual Arthur Lira e o PP são estrelas de primeira grandeza – insiste tanto em ocupar o Ministério da Saúde, cujo orçamento é de quase 190 bilhões de reais e está entre os maiores da Esplanada.

Se em Brasília a disputa pelo cofre da Saúde é acirrada, em Maceió o cofre do Veredas está dominado. Desde 2017, só aliados ou parentes de Arthur Lira administraram a massa de dinheiro destinada ao Hospital Veredas. De julho de 2017 a outubro de 2022, o cargo de diretor financeiro do hospital foi ocupado por Adeilson Loureiro Cavalcante, político ligado a Lira que já figurou em escândalos na Saúde. Com a saída de Cavalcante, o cargo passou a ser ocupado por Pauline Pereira, prima de Arthur Lira. Ela também ocupa uma das dezesseis cadeiras do conselho deliberativo do hospital, onde César Lira, outro primo do presidente da Câmara, também tem assento. (Uma rápida descrição dos laços de sangue e de verbas: Pauline Pereira é irmã de Joãozinho Pereira, o chefe da Codevasf, o epicentro dos recursos do orçamento secreto em Maceió. César Lira, por sua vez, acumula o cargo no conselho do hospital com o posto de superintendente estadual do Incra. O Incra de Alagoas é a quarta unidade do instituto que mais recebeu pagamentos no país durante o governo Bolsonaro.

Apesar da fartura de recursos públicos, o Hospital Veredas encontra-se em graves dificuldades financeiras. Uma investigação conjunta da Agência Pública e da piauí mostra que o agravamento dos problemas do hospital coincide com o começo da gestão do PP no Ministério da Saúde, em Brasília. No último dia 16 de junho, os funcionários entraram em greve porque chegaram a ficar três meses sem receber salário neste ano e, até hoje, não receberam o décimo-terceiro do ano passado.

O tradicional Hospital do Açúcar, em Maceió, criado na década de 1950 por usineiros e produtores de cana, passou por uma ampla reforma e reabriu suas portas em abril de 2019 com um novo nome: Hospital Veredas. É um prédio imponente, localizado em frente a um parque, com 264 leitos. Mas o que mais chama a atenção é seu enorme poder de atrair verbas públicas, sobretudo a partir de 2016. Em maio daquele ano, dias depois do afastamento da presidente Dilma Rousseff, o PP, o partido de Arthur Lira, assumiu o controle do Ministério da Saúde. Daí em diante, o Hospital Veredas recebeu uma quantia fabulosa: quase 1 bilhão de reais. Em repasses federais, foram 287 milhões. Em repasses estaduais, 271 milhões. E, em repasses municipais, mais 413 milhões. Com tanto dinheiro no cofre, acabou recebendo mais recursos do que a própria Santa Casa de Maceió, que atende mais pacientes do que o Veredas.


“É um montante altíssimo”, espantou-se José Wilton da Silva, presidente do Conselho Estadual de Saúde de Alagoas. Ele já adiantou que fará uma análise detalhada dos repasses ao hospital e, se for o caso, vai propor uma auditoria nas contas do Veredas. “Precisamos saber por que o Veredas recebe mais do que os outros hospitais e por que tem uma dívida há muitos anos incontrolável.” O momento solene de abertura da torneira federal que começou a jorrar dinheiro para o Veredas em 2016 só aconteceu no ano seguinte, no dia 26 de julho de 2017.

 

Naquela data, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, PP do Paraná, esteve em Maceió para uma visita ao hospital, que ainda se chamava Hospital do Açúcar. Ao ministro, juntaram-se o deputado federal Arthur Lira e seu pai, o então senador Benedito de Lira, ambos do PP. Em uma solenidade, a trinca anunciou a liberação de 6 milhões de reais para o hospital. “Nós estamos muito felizes que, realmente, o Ministério da Saúde volta os olhos para essa casa, e com o apoio integral do senador Benedito de Lira e do deputado Arthur Lira”, festejou o presidente do hospital, o médico Edgar Antunes Neto. Era o dinheiro para a reforma que, dois anos depois, estaria concluída.

Antes de partir da solenidade em Maceió a bordo de um avião da FAB, o ministro Ricardo Barros fez questão de dizer que a liberação do dinheiro atendia uma demanda dos Lira. Num vídeo, Barros deixou gravado que a visita tinha sido “interessante” e agradeceu a “insistência” do deputado e do senador pelos recursos. “Liberamos 6 milhões de reais para custeio do Hospital do Açúcar a pedido do deputado Arthur Lira, do senador Benedito de Lira. É muito importante que nós possamos recuperar o Hospital do Açúcar para um atendimento cada vez melhor da saúde de todo o povo de Alagoas”, destacou. Depois disso, veio o derrame de dinheiro público, que, só em verba federal, totalizou 287 milhões de reais.

Entre os hospitais filantrópicos de Maceió, o Veredas é o maior em número de leitos e de funcionários, superando a Santa Casa e o Hospital Sanatório. No entanto, atende menos gente e, portanto, tem custo menor. Os atendimentos ambulatoriais do Veredas são bastante inferiores aos da Santa Casa, por exemplo. Entre 2020 e 2022, a Santa Casa teve uma média anual de 378 mil atendimentos, contra apenas 67 mil do Veredas. Seus custos também são muito menores que os da Santa Casa. No ano passado, o custo dos atendimentos da Santa Casa registrados no SUS chegou a 32 milhões de reais, enquanto o do Veredas não passou de 7 milhões. Além dos atendimentos e dos custos, as internações também são menores. A Santa Casa fez 15 904 internações entre 2021 e 2022, contra 10 720 do Veredas. Os gastos do Veredas com internações ficaram abaixo até do que as despesas de duas instituições com estruturas até menores, como o Hospital da Mulher e o Hospital Universitário.

Mesmo assim, o Veredas é o destino final de muito dinheiro. Nos últimos sete anos, o PP foi estrela no Ministério da Saúde. Estava no comando da pasta no governo Michel Temer e, durante o governo Jair Bolsonaro, teve forte presença nas estruturas internas do ministério, sobretudo nos setores que liberavam verbas. Em junho de 2021, o PP teve uma baixa no Ministério da Saúde: o então diretor do Departamento de Logística, Roberto Ferreira Dias, indicado pelo Centrão, foi demitido sob suspeita de pedir propina na compra de vacina contra a Covid-19. Mas o domínio do Centrão prevaleceu em cargos estratégicos e só começou a perder espaço com a posse do presidente Lula e a nomeação da ministra Nísia Trindade, que comandou por seis anos a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Por isso, o Centrão – no qual Arthur Lira e o PP são estrelas de primeira grandeza – insiste tanto em ocupar o Ministério da Saúde, cujo orçamento é de quase 190 bilhões de reais e está entre os maiores da Esplanada.

Se em Brasília a disputa pelo cofre da Saúde é acirrada, em Maceió o cofre do Veredas está dominado. Desde 2017, só aliados ou parentes de Arthur Lira administraram a massa de dinheiro destinada ao Hospital Veredas. De julho de 2017 a outubro de 2022, o cargo de diretor financeiro do hospital foi ocupado por Adeilson Loureiro Cavalcante, político ligado a Lira que já figurou em escândalos na Saúde. Com a saída de Cavalcante, o cargo passou a ser ocupado por Pauline Pereira, prima de Arthur Lira. Ela também ocupa uma das dezesseis cadeiras do conselho deliberativo do hospital, onde César Lira, outro primo do presidente da Câmara, também tem assento. (Uma rápida descrição dos laços de sangue e de verbas: Pauline Pereira é irmã de Joãozinho Pereira, o chefe da Codevasf, o epicentro dos recursos do orçamento secreto em Maceió. César Lira, por sua vez, acumula o cargo no conselho do hospital com o posto de superintendente estadual do Incra. O Incra de Alagoas é a quarta unidade do instituto que mais recebeu pagamentos no país durante o governo Bolsonaro.

Apesar da fartura de recursos públicos, o Hospital Veredas encontra-se em graves dificuldades financeiras. Uma investigação conjunta da Agência Pública e da piauí mostra que o agravamento dos problemas do hospital coincide com o começo da gestão do PP no Ministério da Saúde, em Brasília. No último dia 16 de junho, os funcionários entraram em greve porque chegaram a ficar três meses sem receber salário neste ano e, até hoje, não receberam o décimo-terceiro do ano passado.

O Ministério da Saúde, por meio de uma nota, informou que “a pasta não tem nenhuma interferência na gestão administrativa do estabelecimento [Veredas] e nenhuma indicação foi realizada pela atual gestão”. Procurado pela reportagem, o deputado Arthur Lira não quis se manifestar. Fica em aberto a questão central: como o hospital sob o comando da turma do deputado recebeu tanto dinheiro e não tem recursos nem para pagar salários?

A Agência Pública e a piauí identificaram contratações ligando o cofre do Hospital Veredas com escritórios de advocacia. Em 2 de fevereiro de 2018, por exemplo, o Hospital Veredas contratou o escritório do advogado Adriano Costa Avelino para atuar em processo de dívidas do hospital com a Eletrobrás. Apesar da crise financeira por que passava, o hospital firmou um contrato alto que previa o pagamento ao advogado em duas parcelas, independentemente do resultado da ação.  Diz o contrato, ao qual a reportagem teve acesso: “Os valores pagos ao contratado (…) não estão sendo pagos em razão da apresentação de qualquer resultado ou condição, inclusive na hipótese de realização de acordo judicial e/ou extrajudicial, com ou sem redução de valores”.

Procurado pela reportagem, Avelino confirmou que recebeu os 2,8 milhões de reais e disse que o valor é proporcional ao montante do processo, avaliado na época em 32 milhões de reais. Advogados ouvidos pela piauí consideraram o valor do pagamento dos honorários elevado, e que o hospital poderia ter negociado um preço melhor, deixando um pagamento maior para o caso de vitória.

Em resposta, Avelino disse que obteve uma decisão favorável em primeira instância, para que houvesse isenção da cobrança do ICMS sobre a dívida total, mas que houve um recurso e, desta etapa em diante, outros advogados começaram a atuar no processo. Conforme os autos do processo, Adriano Avelino passou a representar o hospital em 7 de maio de 2018, assumindo o lugar de Joaquim Pontes Miranda Neto. Dois anos depois, Pontes Miranda Neto reassumiu o caso em conjunto com Filipe Pedroza Antunes, conforme uma nova procuração assinada em outubro de 2019 por Edgar Antunes – presidente do Veredas e pai de Filipe Antunes –, mas que só foi anexada ao processo um ano depois, em 4 de outubro de 2020.  “Eu continuo lá nos autos, mas a condução é feita por vários advogados”, disse Avelino.

Avelino é o advogado trabalhista de Arthur Lira. Desde 2013, já atuou em pelo menos onze processos trabalhistas em favor do deputado. Arthur Lira parece ter muita confiança em Avelino, tanto que tem feito campanha para que o advogado seja nomeado para uma vaga no Tribunal Superior do Trabalho (TST). A OAB está em fase de análise dos nomes inscritos para indicar seis deles ao TST, que depois formará uma lista tríplice da qual o presidente Lula deverá escolher um. Avelino é candidatíssimo.

A Agência Pública e a piauí pediram acesso aos balanços financeiros do Veredas, ou, pelo menos, informações sobre pagamentos a fornecedores e escritório de advocacia, mas o hospital não quis fornecer. Analisando-se ações movidas pelo Veredas na Justiça, no entanto, é possível constatar que a instituição está habituada a contratar advogados com projeção nacional e laços com o poder em Brasília – o que não é irregular. Em 2018, por exemplo, contratou o advogado Eduardo Martins, filho do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins. Entre 2018 e 2019, Eduardo assinou quatro petições no processo em que o Veredas pede imunidade tributária por ser uma entidade filantrópica. Procurado pela reportagem, Eduardo achava que havia atuado pelo hospital “dez anos atrás”, mas, apresentado às petições mais recentes, reconheceu que se equivocou. Ele não quis informar os valores que recebeu.

O Veredas também já contratou a advogada Roberta Maria Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. Seu escritório, o Rangel Advocacia, atuou numa ação movida pelo Veredas junto ao Conselho Nacional de Justiça, órgão que fiscaliza o Judiciário. Na ação, o hospital alegou que um desembargador de Alagoas perseguia a fundação que administra o Veredas em razão de desavenças com Edgar Antunes, o presidente do hospital, mas perdeu a causa. Procurada pela reportagem, Rangel confirmou sua atuação no processo e não comentou os honorários. “Os dados devem ser preservados por imposição contratual e legal”, disse ela, por meio de sua assessoria.

Diante da falta de informações do hospital e de advogados, não é possível estimar quantos milhões de reais foram gastos com honorários enquanto a entidade afunda em dívidas e não paga salários. Mas fontes ouvidas em Maceió acreditam que os contratos de advocacia do Veredas são dutos por onde escoam milhões de reais.

Filipe Pedroza Antunes, de 29 anos, não é o único membro da família do presidente do Veredas com vínculos com o hospital. Outro filho de Edgar Antunes, Edgar Leahy Antunes, 41 anos, é membro do conselho deliberativo do Veredas. O empresário Rodrigo Pedroza Antunes, 27 anos, também filho do presidente, já trabalhou no hospital, conforme registros a que a reportagem teve acesso. Uma filha, Karine Leahy Antunes, também trabalha no Veredas. Hoje, tem uma clínica de odontologia, instalada num terreno do hospital. Por fim, Marcos Pedroza, cunhado de Edgar que, por coincidência, tem o mesmo sobrenome, é chefe de gabinete do presidente do hospital. Procurado, Edgar Antunes não retornou aos contatos da reportagem.  

O apadrinhado de Arthur Lira que por cinco anos dirigiu as finanças do Veredas é Adeilson Loureiro Cavalcante, ex-secretário de Saúde de Maceió e ex-diretor administrativo do Hospital Sanatório, uma instituição filantrópica, assim como Hospital Veredas. Em 2011, seu nome apareceu numa lista dos denunciados pelo Ministério Público Federal no âmbito de uma acusação de falcatrua no Hospital Sanatório. Os denunciados eram suspeitos de participar de um esquema que expedia guias de exames que nunca foram feitos no hospital. Com isso, recebiam reembolsos do SUS sem ter feito gasto algum. Nos exames de mamografias – todos fictícios – constavam nomes de pacientes como Suzana Vieira, Carolina Dieckmann, Ivete Sangalo, Bianca Rinaldi, Letícia Spiller, Solange Couto, Rafaela Fischer, Juliana Paes e Vera Holtz.

Em 2016, o deputado Arthur Lira indicou Cavalcante ao cargo de secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde em Brasília. Logo, ele ganhou o dom da onipresença. Em 2017, virou conselheiro e diretor financeiro do Veredas, na época em que a instituição começava a receber o alto fluxo de verbas públicas. Como a lei proíbe o acúmulo desses cargos, o então ministro Ricardo Barros anunciou que Cavalcante podia ocupar os cargos em Maceió, pois estava “licenciado” do seu posto no Ministério da Saúde, em Brasília. Na prática, ele continuava operando nas duas pontas. Uma consulta ao Diário Oficial da União mostra que Cavalcante assinou dezenas de documentos no segundo semestre de 2017. Procurado, Barros disse que “a nomeação é absolutamente regular” e acrescentou: “Quanto ao Ministério da Saúde não há absolutamente nada que não esteja 100% na regra nos fatos narrados”.

No dia 4 de outubro de 2018, Cavalcante assinou – na condição de ministro da Saúde substituto! – a portaria nº 3225, que habilitou o município de Maceió a receber 5 milhões de reais, com destino carimbado: o cofre do Hospital Veredas, onde Cavalcante continuava sendo conselheiro e diretor. A portaria não traz o nome do hospital, mas sim seu código de identificação: CNES 2006448. Teve mais: nos últimos dias do governo Temer em 2018, quando já estava de saída do Ministério da Saúde, Cavalcante deu pareceres favoráveis à aprovação de três convênios que somavam 44,1 milhões de reais. Pouco depois, quando o comando do Ministério da Saúde não era mais de um indicado do PP, os convênios foram cancelados. O Veredas tinha completado o bingo do impedimento técnico para receber o dinheiro: Segundo o despacho de cancelamento, o hospital “não apresentou estatuto; ata de eleição da diretoria; certidões do FGTS, SRF/PGFN, INSS, Receita Estadual, Receita Municipal. Declaração de Funcionamento Regular. Inadimplência no CADIN”. A reportagem tentou contato com Adeilson Cavalcante, mas não obteve retorno.

Os privilégios do Veredas na distribuição de recursos públicos ficaram mais evidentes com a chegada da pandemia. Em 2016, quando o Ministério da Saúde já estava com o PP, o hospital havia recuperado o chamado Cebas, um certificado importantíssimo que isenta um hospital filantrópico do pagamento de impostos e permite que faça convênios com o poder público. O resgate do Cebas foi uma novela. No governo Dilma Rousseff, o Ministério da Saúde recusou duas vezes a emissão do documento em razão do descumprimento de três normas essenciais. A última recusa saiu numa nota técnica de 18 de novembro de 2015. Noves meses depois, já sob o governo Temer, tudo mudou. Em uma decisão, fundamentada em menos de duas linhas, um juiz da Justiça Federal em Brasília suspendeu as inscrições em dívida ativa lançadas contra o hospital. O Ministério da Saúde informou que o Cebas do Veredas segue vigente.

Com a mudança, o Veredas passou a receber um tratamento preferencial em relação aos demais hospitais na divisão de recursos do SUS, em especial na pandemia. No ano de 2020, até o fim de agosto, no primeiro pico da doença, o Ministério da Saúde mandou 54,1 milhão de reais para a Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e para algumas unidades hospitalares localizadas na cidade, mas o grosso foi destinado para o Veredas: 31,9 milhões de reais. Ou seja: o Veredas levou 60% dos recursos numa cidade com 249 estabelecimentos públicos e privados vinculados ao SUS. A fatia do Veredas foi quase o triplo do que foi destinado à Santa Casa, que ficou com apenas 11,3 milhões. A divisão faria sentido se o Veredas concentrasse a maior parte dos atendimentos, mas isso não aconteceu.

De agosto até o final de 2020, o Veredas continuou atraindo dinheiro para o enfrentamento à pandemia. Recebeu mais 7 milhões e fechou o ano com um total de 38,8 milhões de reais. E, no entanto, entre setembro e dezembro, o hospital registrou números insignificantes de atendimento de pacientes de Covid – menores do que a Santa Casa, o Hospital da Mulher e o Hospital Metropolitano. Em setembro, por exemplo, o Veredas não teve um único paciente de Covid, seja na UTI, seja na enfermaria, segundo as informações da Prefeitura de Maceió. Em contraponto, num único dia de setembro, dia 15, a Santa Casa tinha seis pacientes internados. Com base nesses números, constata-se que o Veredas encheu os cofres na pandemia e não precisou atender quase ninguém.

O Veredas consegue dinheiro até quando não era para ele. Em 2021, o próprio deputado Arthur Lira, que concentrava todo o poder de distribuição do dinheiro do orçamento secreto, despachou 10 milhões de reais para o hospital. Curiosamente, o Portal da Transparência informa que o dinheiro tinha outro destino: 7,6 milhões iriam para a Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e 2,3 milhões estavam destinados à Associação Pestalozzi de Maceió, que é um centro especializado em reabilitação. O empenho que mandava a verba para essas duas entidades foi cancelado e os recursos foram redirecionados para o Veredas.       

Imbatível na captura de verbas públicas, o hospital nunca perde. Quando a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, mandou suspender os repasses do orçamento secreto, o Veredas tinha um empenho a seu favor de 8,4 milhões de reais. Com a decisão de Weber, o dinheiro nunca chegaria. Mas, um mês e meio depois, a ministra voltou atrás e reativou as remessas. Em questão de dias, os 8,4 milhões já tinham vencido toda a burocracia e foram transferidos para o Veredas via Fundo Municipal de Saúde de Maceió. Esse foi um daqueles repasses que nenhum político assumiu, mas o fato é que, no primeiro ano de Arthur Lira na Presidência da Câmara, 18,4 milhões do orçamento secreto pingaram na conta do hospital.

O Hospital Veredas é uma caixa-preta que muitos órgãos fiscalizadores não fazem questão de abrir, e outros, quando tentam, não conseguem. Em setembro de 2020, o Ministério Público Federal instaurou um inquérito civil depois de receber uma denúncia anônima relativa a repasses federais. O caso pouco avançou até hoje. Em 21 de junho deste ano, um documento do MP reclama da “insuficiência das informações prestadas até então sobre a prestação de contas da aplicação destes recursos, assim como a não publicidade e transparência da destinação dos recursos”.

Já a Promotoria de Justiça das Fundações do Estado, responsável por fiscalizar os gastos de entidades como o Veredas, esteve sob o comando de Failde Soares Ferreira de Mendonça durante 22 anos. Ela se aposentou em 2019, e atualmente trabalha para o Veredas como consultora titular de gestão. “Presto consultoria na área de minha especialidade, na área de gestão, porque é nisso que sou especialista. Minha seriedade e minha competência foram reconhecidas pelo mercado privado”, disse. O filho de Failde também ganhou um cargo no hospital. Roberto Fleury Ferreira de Mendonça, de 27 anos, é engenheiro civil do Veredas.

Mendonça deixou o cargo de promotora de Justiça coberta de elogios de Edgar Antunes, presidente do Veredas, que, em uma postagem nas  redes sociais do hospital, chamou-a de “mulher guerreira que não abre mão de estar na defesa de quem mais precisa” e dona de uma “longa folha de serviços em benefício dos alagoanos durante todo o período que desempenhou suas funções como promotora e curadora das fundações no Ministério Público”. A reportagem pediu acesso aos balanços fiscais do Veredas ao novo promotor das fundações do MP alagoana, Givaldo Lessa. Ele disse que não poderia dar acesso. Lessa é amigo de Mendonça. Em seu gabinete, há uma foto da ex-promotora.

Uma evidência de que o cargo de diretor financeiro do Hospital Veredas não era um posto técnico – mas uma indicação política – se materializou no final do ano passado. Adeilson Loureiro Cavalcante, que ocupava o cargo desde 2017, foi embora no momento em que seu irmão, o então deputado estadual Léo Loureiro, resolveu abandonar o PP e aderir ao grupo de Paulo Dantas, que então concorria ao governo de Alagoas. Ao que tudo indica, Arthur Lira não tinha como perdoar a traição. Afinal, Dantas, que acabou eleito governador, é filiado ao MDB e, para piorar, é aliado do senador Renan Calheiros, o maior adversário alagoano dos liristas.

Ao assumir a diretoria financeira, Pauline Pereira, prima de Arthur Lira e ex-prefeita da cidade alagoana de Campo Alegre, chegou pedindo voto para o seu candidato e dos Lira ao governo do estado, o derrotado Rodrigo Cunha. “É um grande desafio que estou assumindo, pois o hospital está praticamente parado por falta de financiamento do estado de Alagoas”, disse ela. “Por isso, é muito importante que votem em Rodrigo Cunha para que o hospital Veredas tenha a garantia de atender as pessoas.”

A situação financeira do Veredas, de fato, estava ruim, mas não era por falta de verbas – e ficou pior. No fim de 2022, quando Cavalcante cedeu a cadeira para Pauline Pereira, o quadro, de fato, era bastante precário, mas, de lá para cá, se agravou ainda mais. O hospital acumula dívidas crescentes em todos os setores: tributário, previdenciário e trabalhista. Em valores recentes, passam de 133 milhões de reais. Faltam recursos até para pagar as parcelas das dívidas trabalhistas, que somam 21,5 milhões. Segundo dados da Justiça do Trabalho, são 321 processos trabalhistas para um universo de menos de 2 000 funcionários.      

Em despachos nos meses de fevereiro, maio e junho deste ano, o juiz que centraliza a execução das dívidas trabalhistas do hospital classificou a situação do Veredas como “tenebroso cenário”. “A executada [hospital Veredas], de forma recorrente, não tem honrado com o compromisso de quitar a sua dívida  trabalhista”, escreveu o juiz. “O número de parcelas inadimplidas só vem aumentando. (…) Observa-se, de forma preocupante, que inúmeras (novas) ações vêm sendo ajuizadas”. O magistrado ainda concluiu que não se “consegue extrair qualquer sinal que sugira uma perspectiva positiva no cenário acima relatado”.

A diretora Pauline Pereira reconhece os problemas, mas transfere a culpa para o governo de Alagoas. “O governo do Estado deve ao Veredas quase 19 milhões de reais em serviços prestados pelo hospital no período de outubro de 2022 a maio de 2023”, disse ela, num vídeo publicado nas redes sociais. “Quem deve pagar é o governador Paulo Dantas. Dezenove milhões é um valor suficiente para colocarmos em dia o salário dos nossos funcionários.” O governo estadual admite que tem pagamentos em atraso do primeiro semestre deste ano, mas contesta o valor de 19 milhões sem apontar o valor correto. O que não se entende é como um atraso agora pode explicar um buraco tão grande num hospital que recebeu tanto dinheiro por tanto tempo. A reportagem procurou Pauline Pereira, mas ela não respondeu às tentativas de contato por meio de WhatsApp e e-mail, nem atendeu às ligações.

Além dos problemas de gestão, o Veredas está enrolado com a Vigilância Sanitária, que já aplicou três multas ao hospital desde o início da pandemia, segundo mostra um levantamento no Diário Municipal da Prefeitura de Maceió. A primeira multa, de dezembro de 2020, decorreu da ausência de registros internos de certos exames de sangue — hepatite, sífilis, HIV/Aids, doença de Chagas – colocando a população em “risco sanitário”. Os fiscais consideraram a “infração de natureza gravíssima”. Em maio de 2021, nova multa por “infração gravíssima”, devido à presença de “entulhos e odor fétido de fossa, água de origem empoçada e ausência de capinação na área externa”. A terceira multa, de natureza “grave”, saiu em novembro de 2021, por “contrariar normas legais pertinentes no controle de poluição do solo, instalar e operar estação de tratamento de esgoto sem licença (…) e sem projeto (…).” Os fiscais registram que, em dois casos, o hospital, mesmo sabendo das irregularidades, não tomou providências. Como nem defesa apresentou, foi julgado à revelia nas duas vezes. “Onde está o dinheiro?”, perguntava, megafone à mão, um manifestante no protesto que marcou o início da greve dos funcionários do Veredas, no dia 16 de junho. “Vamos ocupar a rua. Vamos mostrar para a sociedade e cobrar uma posição dos órgãos de fiscalização”, anunciou. Na manifestação, denunciou os salários atrasados, a falta do décimo-terceiro e protestou contra demissões. “Mas retaliar, perseguir, demitir, isso faz parte da gestão”.

Quatro dias antes, os funcionários fizeram uma reunião para discutir a greve. Uma copeira contou que foi despejada de sua casa porque não teve condições de pagar o aluguel e voltou a morar com a mãe. Outra copeira contou que o dono do imóvel onde vive levou sua geladeira como parte do pagamento do aluguel atrasado. Uma técnica de enfermagem lembrou sua angústia por não ter tido condições de comprar presente para o filho de 2 anos no último Natal porque o hospital não pagou o 13º salário integral. Um maqueiro relatou que não consegue mais dormir em razão das dívidas acumuladas e está dependendo da ajuda da família para sobreviver. Os servidores, que pediram para que seus nomes não fossem divulgados por receio de retaliações, denunciaram ainda que convivem com a falta de itens básicos para trabalhar, inclusive medicamentos, alimentos na cozinha e até papel higiênico.

Por Alice Maciel, Breno Pires, revista piauí


Fonte: apublica / revista piauí