quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

“Damos tanta atenção à felicidade que não lidamos com a tristeza”

Imagem: Reprodução

Em entrevista, o historiador norte-americano Peter. N. Stearns fala sobre seu novo livro lançado no Brasil, que aponta como a noção de felicidade mudou ao longo dos séculos.

A busca pela felicidade é tratada por filósofos, religiosos e políticos desde as primeiras civilizações. Na China do século 5 a.C., Confúcio pregava que o contentamento resulta da harmonia, embora esse estado fosse incompatível com o contexto de guerra que o pensador vivia. Para Aristóteles, um século depois, toda ação humana tinha como objetivo a felicidade. Na Idade Média, no entanto, essa associação ficou de lado. A Igreja Católica passou a sugerir que a verdadeira felicidade só poderia ser atingida após a morte e que, em vida, as mazelas nos fortaleceriam.

Outra virada ocorreu no final do século 17: com os iluministas, o desejo de ser feliz voltou ao centro do debate social, político e até econômico. Essa visão, aliás, ainda perdura no Ocidente. Nessa parte do mundo também imperam os valores das Revoluções Industriais, nos séculos 18 e 19, que aproximaram a noção de felicidade da necessidade de bens materiais.

As nuances e os vários fatores que contribuíram para a ideia de felicidade que temos hoje estão descritos no livro História da Felicidade, do estadunidense Peter N. Stearns, lançado no Brasil em outubro pela Editora Contexto. Formado em história pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, Stearns é professor da Universidade George Mason, também nos EUA, onde foi reitor entre 2000 e 2014. Sempre muito interessado em desvendar outras culturas, ele se dedica a conhecê-las por meio do estudo da história das emoções. “Devemos olhar ao redor do mundo e tentar entender como operam essas diferentes visões”, sugere o estudioso de 86 anos, em entrevista.

Autor também dos livros A infância (2006), História das relações de gênero (2007) e História da sexualidade (2010), todos publicados no Brasil pela Contexto, Stearns reflete sobre como podemos nos beneficiar de pesquisas sobre a felicidade. Na entrevista a seguir, ele também comenta as dificuldades de construir uma perspectiva histórica e global do contentamento e como esse sentimento tem sido abalado pela pandemia de Covid-19.

Quando falamos em história, primeiro vêm à mente guerras, revoluções, dinastias. Mas você escolheu se especializar em aspectos mais subjetivos que atravessam a história da humanidade, como a infância, as relações de gênero e, agora, a felicidade. De onde vem esse interesse?

Eu tenho trabalhado com a história das emoções desde a década de 1980, inicialmente com foco em raiva e ciúmes, porque percebi que a compreensão sobre determinadas emoções pode mudar ao longo do tempo. Então, como historiador, tento descobrir por que e como essas concepções foram se transformando e, assim, vou ajudando a construir um conhecimento adicional que nos dá uma perspectiva maior sobre como nossas emoções contemporâneas se desenvolveram.

Quais são os maiores desafios ao fazer essa retrospectiva da evolução das nossas emoções?

Há muitas dificuldades. A primeira delas é que, obviamente, as ideias sobre determinada emoção diferem muito de uma região para outra. Por exemplo, o Japão é um país muito próspero e bem- -sucedido, mas não se sai muito bem em pesquisas sobre felicidade. Então, é preciso tentar descobrir o que acontece na cultura nipônica e determinar se os japoneses são realmente menos felizes do que outros povos ou se simplesmente definem a felicidade de forma diferente do tipo de felicidade que a pesquisa tentou mensurar.

É fascinante apreciar essas diferentes visões, mas é também desafiador. Particularmente se não há muita pesquisa sobre certo assunto. Por exemplo, é necessário produzir mais trabalhos sobre o padrão de felicidade na África Subsaariana, inclusive do ponto de vista histórico. Ter informações o bastante é outro desafio. É bem fácil falar sobre o que pensadores como Aristóteles e Confúcio disseram sobre felicidade, mas muito, muito mais difícil dizer o que pessoas comuns pensavam sobre isso.

É necessário produzir mais trabalhos sobre o padrão de felicidade na África Subsaariana, inclusive do ponto de vista histórico”

— Peter N. Stearns reflete sobre a falta de pesquisas fora da Europa Ocidental

No livro história da felicidade, você também cita como desafio o fato de a maior parte das pesquisas sobre o assunto serem feitas sobre e sob a perspectiva da europa ocidental. o que tem sido feito para mudar essa tendência?

Há um crescente interesse sobre a história da felicidade em outras culturas. Então, talvez daqui alguns anos isso deixe de ser um problema. Na América Latina, acabam de criar uma nova sociedade focada na história das emoções [Sociedad Iberoamericana de Historia de las Emociones y la Experiencia]. Esta é uma região onde a pesquisa está realmente crescendo, mas ainda não é tão abundante quanto na Europa Ocidental. Ainda assim, os estudos têm começado a se diversificar em termos de origem.

Outra região sobre a qual precisamos saber mais é a Ásia. De forma geral, temos mais registros sobre a felicidade no leste do continente. As comunidades dessa região costumam ser menos individualistas do que as ocidentais. Enquanto nós nos sentimos mais confortáveis ao falar sobre a importância da felicidade individual e, em alguns casos, até mesmo dizer como os outros podem ficar mais felizes, as culturas do Leste Asiático estão mais focadas em conexões e questões coletivas, na importância do pertencimento. Essa é uma diferença fundamental.

Ao menos no ocidente, a ideia de felicidade está muito ligada ao acesso a bens materiais e serviços que até pouco tempo nem existiam. Quando olhamos para aquelas culturas que viviam de hábitos agrários e formaram as primeiras sociedades, o que importava para ser feliz?

As sociedades agrárias colocavam muita ênfase no número de filhos que a família deveria ter. Isso foi, por um tempo, um fator de definição de felicidade para os gregos, por exemplo. Muitas sociedades agrárias eram bastante religiosas. Então, na história da felicidade, é importante procurar entender o que diferentes religiões diziam sobre essa emoção. Por exemplo, o Cristianismo falava sobre ser feliz nesta vida, mas despendia mais atenção à felicidade na vida após a morte. O papel da família e da religião são dois fatores que foram fundamentais para as sociedades agrárias até se tornarem mais industriais.

Seu livro aponta o iluminismo e a revolução industrial como acontecimentos essenciais para moldar a concepção contemporânea de felicidade. Como você explica a influência de cada um desses episódios hoje em dia?

O Iluminismo é absolutamente fundamental na Europa Ocidental, nos Estados Unidos e na América Latina. O movimento argumentava que a felicidade neste mundo é perfeitamente normal e defendia que as pessoas deveriam tentar ser felizes. Os iluministas discorreram sobre o direito à felicidade, uma ideia bem inovadora, e pensavam que, em uma sociedade adequadamente organizada, a felicidade social e individual deveria aumentar. Essa é uma mudança muito dramática em comparação a visões mais tradicionais que prevaleciam até então. Com o Iluminismo, os teóricos políticos começaram a falar sobre como suas teorias promoveriam mais felicidade. Essa é uma mudança fundamental na visão global sobre a emoção.

A industrialização é um processo cujo papel é ambíguo, já que ela dificultou a vida para muitas pessoas — pelo menos por um tempo. Esse processo criou novas divisões, mas, a longo prazo, ajudou a promover a ideia de que uma vida material melhor era um aspecto crucial da felicidade e que, se a economia estivesse bem, a felicidade estaria garantida. Enfatizar o papel do crescimento econômico é exagerado, mas acho que é uma visão comum ainda hoje e a industrialização encorajou essa conexão.

Temos uma necessidade de não apenas ser felizes, mas de parecermos. você apontaria algum fator histórico que tenha contribuído para essa imposição?

Acho que há algumas diferenças dependendo de em qual sociedade você vive. Mas, pelo menos em lugares como a Europa Ocidental, o Iluminismo também reforçou a necessidade de parecermos alegres. As pessoas eram encorajadas a sorrir mais, as crianças também deveriam ser mais felizes e desfrutar de sua infância. Preocupar-se com pessoas que não pareciam ser felizes o bastante também foi um aspecto importante nessa nova ênfase na felicidade.

Em 2005, um artigo publicado na revista review of general psychology ficou famoso ao concluir que cerca de 50% do nosso contentamento depende de fatores genéticos. O que isso muda no debate sobre a felicidade?

A partir dessa descoberta, é possível inferir que algumas pessoas têm maior predisposição para personalidades mais alegres. Mas a genética não é o único fator. Diferentes padrões culturais e situações da vida real interagem com a genética. Se você está em uma situação de guerra ou doença, isso vai desafiar a sua felicidade genética. Afinal, a felicidade é composta por uma combinação de fatores.

“Se você está em uma situação de guerra ou doença, isso vai desafiar sua felicidade genética. A felicidade é composta por uma combinação de fatores”

— Stearns pondera a influência da genética na felicidade

Afinal, como os estudos sobre felicidade podem ajudar a melhorar nossa vida?

Estudar a felicidade, primeiramente, nos dá a compreensão de que as definições acerca dela são parcialmente construídas pela nossa sociedade. Isso não significa que os padrões contemporâneos estejam errados, mas podemos entender que eles se desenvolveram ao longo do tempo e reagir diferentemente a eles. Para mim, a maior vantagem de estudar a felicidade é dar aos indivíduos a oportunidade de pensar quais são suas próprias definições.

Fotografia do livro "História da Felicidade" escrita por Peter N. Stearns
( (Editora Contexto, 368 páginas) — Foto: Arquivo pessoal

Muitos condicionam a felicidade a padrões de vida, consumo e luxos; enquanto outros a definem por um senso de realização, um desejo de contribuir para a sociedade. Esse tipo de discussão ajuda indivíduos a decidirem quais são seus modelos. Estudar a felicidade não dita às pessoas como ser feliz, mas sugere formas de refletir sobre isso, para que tenham uma perspectiva mais ampla e clara sobre o assunto.

Analisando o passado e nosso contexto atual, em recuperação de uma pandemia, é possível estabelecer alguma tendência sobre a felicidade nos próximos anos?

Agora, a felicidade está um pouco abalada em todo o mundo. A pandemia claramente perturbou a todos. Em lugares como os Estados Unidos e o Brasil, há também divisões políticas e ameaças de violência. A felicidade está comprometida, mas eu espero que isso seja temporário e que possamos prosseguir com a possibilidade de ter uma maior felicidade ou uma maior atenção à nossa felicidade quando nos recuperarmos da pandemia e de alguns desafios econômicos.

Para a maior parte das pessoas, no mundo todo, encontrar a felicidade agora é mais difícil do que há alguns anos. Teremos que observar o quão durável será esse período.

Você tem alguma lição que tenha aprendido sobre a felicidade ao longo da produção do livro e que possa compartilhar com os leitores brasileiros?

A lição número um é que é importante reconhecer que a sociedade está diferente e que há definições culturais distintas sobre ela. Devemos olhar o mundo e tentar entender como operam essas diferentes visões.

Mas eu acho que a maior lição, pelo menos para a cultura ocidental, é não prestar muita atenção, o tempo todo, ao quanto somos felizes. Damos tanta atenção à felicidade que não lidamos com a tristeza ou com contratempos tão bem quanto deveríamos. É importante manter o equilíbrio entre felicidade e outros aspectos da vida, outras pressões.

Por fim, escrever este livro sobre a felicidade fez você mais feliz?

Boa pergunta [risos]! Sim, me fez mais feliz porque eu amo pesquisar. Ter essa publicação traduzida para o português também me fez mais feliz, então, o saldo é positivo

Fonte: revistagalileu