sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Brasil corre o risco de deixar jovens no ‘limbo’; veja o que dizem dois dos maiores especialistas em educação do país

Especialistas em educação: Ricardo Henriques e
Ricardo Paes de Barros - Foto: Reprodução
O que tem a dizer dois dos maiores especialistas em educação do país sobre o atual quadro da situação educacional no Brasil.

O país tem enorme dificuldade de copiar boas práticas de ensino, afirma Paes de Barros.

Para o especialista Ricardo Paes de Barros, o Brasil poderia se inspirar em modelo chileno. “Mais importante que gastar mais é gastar melhor”. 

Já para Ricardo Henriques, política educacional não é só necessária como precisa ser redefinida, disse em entrevista o superintendente-executivo do Instituto Unibanco. afirmando, "precisamos diminuir a defasagem em relação aos países ricos".

Ricardo Paes de Barros
 Foto: Silvia Zamboni
O sr. fala muito em melhorar a gestão das escolas, mas esse termo não ganhou uma carga negativa, porque parece que minimiza a falta de verba para educação no país? O sr. concorda com isso?

Ricardo Paes de Barros: Se por definição gestão é aquilo que lhe permite, dados os recursos escassos que todos temos, alcançar o melhor resultado possível, se o seu objetivo é esse, você tem de adorar gestão. Se gestão ganhou má fama, ou é porque alguém não está interessado no resultado, o que não acredito, ou os programas de gestão com os quais ele  teve contato não eram bons. Eram programas que criavam um monte de regra e no fim do dia você não convertia os seus recursos em melhores resultados.

Mas o trabalho dos diretores já é basicamente gestão, não?

Paes de Barros: Tem um problema nisso porque, segundo o resultado da Talis [Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem, da OCDE], no Brasil os educadores têm mais formação em gestão do que na União Europeia. Aqui, 25% tiveram curso de gestão no último ano, e, na UE, 10%. O outro lado dessa história é que, apesar da formação, 70% dos gestores brasileiros se sentem despreparados para lidar com gestão, enquanto na UE o percentual é de 30%.

E como resolver isso?

Paes de Barros: O que o Jovem de Futuro [programa do Instituto Unibanco para melhorar a gestão nas escolas] ensina é a ter um plano, metas, executar e, principalmente, avaliar se está dando certo e ajustar as rotas. A dificuldade é que nem todos os diretores e professores estão acostumados a fazer isso, envolve a capacidade de identificar o problema e depois tem o repertório para lidar com isso.

E por quê isso importa?

Paes de Barros: Se o gestor se meter nos problemas cotidianos e imediatos, sem entender que aquele problema significa uma causa maior, de um problema maior, ele vai ficar louco. Ele tem de descer no chão da escola às vezes, mas não tentar resolver na hora, no varejo. Ele precisa pensar o que precisa fazer, daqui a um mês, para determinado problema não esteja acontecendo.

E como isso atrapalha?

Paes de Barros: O meu problema na escola é o seguinte: não existe uma boa escola em que os professores não tenham uma alta expectativa sobre os alunos. Alta expectativa é essencial para uma boa educação. O que podemos fazer sobre isso? O ideal é que o professor tivesse onde pesquisar as melhores práticas. 

O problema de gestão se repete nas secretarias?

Paes de Barros: Sim. Em qualquer lugar, você tem um risco de ser pautado pelo imediato, e em uma secretaria de educação mais do que em qualquer outro. Em certo sentido, isso gera uma dificuldade de se fazer a reflexão.

A dificuldade de escalar os resultados está relacionada com essa divisão de tarefas?

Paes de Barros: Obviamente que a gestão do sistema educacional brasileiro depende à beça de quanto a gente quer que ele seja mais ou menos centralizado, o que a gente gostaria que fosse padronizado, o que possível de ser definido localmente, mas isso é diferente da gestão local. O Brasil tem muitos casos locais de sucesso e muitos casos locais de insucesso e a razão para isso é uma enorme dificuldade de copiar.

E o que pode ser feito?

Paes de Barros: O Chile publica um livro de 400 páginas todo ano que é simplesmente o que o país aprendeu com as melhores escolas. Esse livro é divulgado para todas as escolas chilenas, já organizado por temas, como evasão, melhores práticas.





A falta de um documento como esse gera quais problemas?

Paes de Barros: Você não tem a melhor prática documentada, não tem ela difundida e também não tem um incentivo. Mesmo que o tivesse, você precisa de assistência técnica para adaptar a prática. Ninguém vai copiar algo literalmente, você adapta ao contexto e, para, isso precisa de assistência técnica. O que o Ceará fez? Pegou uma escola com bom desempenho para dar assistência a outra, mas para isso você precisa ter atores capazes de fazer esse sistema.

Documentamos bem a tragédia, é isso?

Paes de Barros: A gente documenta bem a tragédia e sabe onde não tem tragédia, mas a gente não passa disso. Em certo sentido, a nossa tendência é de tentar tornar a desigualdade invisível, em vez de tentar, a partir das práticas bem-sucedidas, melhorar as escolas com desempenho mais baixo. Voltando ao caso do Chile, lá eles dividem as escolas em três grupos. Um deles é o das melhores escolas, que são abertas a investigação todo ano não para saber o que deu errado, mas sim o que fizeram de certo. Ao mesmo tempo, eles dão atendimento super vip às escolas que estão mal.

Esse trabalho de disseminação de práticas caberia ao Ministério da Educação?

Paes de Barros: Na verdade, qualquer um poderia fazer isso. Faz mais sentido para o Inep fazer isso, para as secretarias estaduais, mas até uma organização da sociedade civil poderia fazer isso. O que uma organização da sociedade civil não consegue fazer, e isso é um ponto central, é que não adianta ter o “livrinho” se não tiver o incentivo. Se não houver isso, não adianta ter o repertório. E isso é função governamental, estatal. O governo federal gasta R$ 360 bilhões por ano com educação, ele tem recurso para fazer uma coisa desse tipo.

A sua opinião recorrente é que o problema da educação não é falta de recursos, é justamente melhor utilizar o que está disponível

Paes de Barros: Que por definição é a gestão, por isso é importante. Se você pegar os dados do Pisa [avaliação internacional de estudantes] e pegar o gasto por aluno, corrigindo para o poder de compra, você vai perceber que o Brasil está 40, 50 pontos abaixo da nota alcançada por países que gastam a mesma coisa que o Brasil. E, se você pegar todos os países que fazem o Pisa, nenhum está tão distante assim dessa linha.

Mas o nosso gasto por aluno é bastante inferior...

Paes de Barros: É verdade que o Brasil é um dos países com menor gasto por aluno entre os que fazem Pisa. Mas há vários que gastam menos do que o Brasil e têm melhor desempenho. Nós gastamos relativamente pouco porque somos um país pobre, de classe média. Agora, não existe nenhum país no mundo que está mais longe da linha do que o Brasil. Então parece que não há nenhum país em que a falta de gestão, entendida como a capacidade de traduzir recursos em resultados, que esteja mais longe do que a ideal do que o Brasil. É por isso que defendo que, mais importante do que gastar mais, é gastar melhor.


"É preciso resolver atraso educacional e reduzir distância em relação à fronteira", diz Henriques


Foto: Silvia Zamboni
O Brasil ficou parado na educação nos últimos 30 anos?

Ricardo Henriques: Tivemos uma mudança muito relevante em acesso, o que é inquestionável, e também houve uma mudança importante em alfabetização. Atingimos ganhos de aprendizagem, que são mais intensos no fundamental. Mas é uma demonstração de que a escola pública tem resultados, para não ficar no discurso maniqueísta de que nada funciona.


O que está muito aquém?

Henriques: A sociedade de conhecimento precisa de massificação com qualidade maior do que a gente está. Os países desenvolvidos estão movendo a fronteira com mais velocidade do que conseguimos acompanhar. Então existe a possibilidade de entrarmos em um limbo do ponto de vista da nova população adulta porque estamos com alta defasagem e a fronteira se movendo. Nós temos de dar conta do passivo que temos, nesse contexto de desigualdade, e ao mesmo tempo ir rapidamente para a nova fronteira - e essa distância aumenta enquanto a gente está conversando.

E como fazer isso?

Henriques: O ponto é o seguinte: a política educacional no sentido pleno é gerar igualdade de oportunidades. Ela não é só necessária como precisa ser redefinida. Não é só largada igual, que já não fazemos, o nosso desafio é gerar igualdade de oportunidade ao longo do ciclo de 12 anos [do ensino fundamental ao médio]. É muito mais trabalhoso em termos de políticas educacionais do que várias das experiências que temos.

A escola não resolve tudo?

Henriques: A escola não resolve tudo, mas isso é função da escola. Uma escola não tem como resolver a escolaridade da mãe, que é um dos principais preditores do desempenho escolar. No entanto, a escola pode lidar com isso e trazer toda a escola a serviço desse estudante, cada disciplina, cada professor.  Portanto, para aqueles alunos que têm maior defasagem na largada, porque a escolaridade da mãe é menor, eu não vou resolver isso, mas lidar com ele e mitigar isso ao longo do ciclo. A educação para ser plena precisa de política social associada, em qualquer lugar do mundo é assim.

E como fazer isso?

Henriques: Na reunião do primeiro bimestre, o grupo de professores que tem uma turma de primeiro ano de ensino médio, por exemplo, precisa olhar com muita nitidez se já aparecerem três ou quatro alunos com nota vermelha. Se eu não prestar atenção nisso, não der alguma gestão de consequência nisso, a única que vai acontecer é isso se repetir no segundo bimestre. E, assim, provavelmente metade deles vai evadindo ao longo do ano, e os que ficarem vão ser reprovados. Aqui é fundamental entender o que é gestão democrática, é um campo de participação compartilhada, totalmente orientada para os estudantes. Gestão democrática é isso, é capacidade de  ter escuta. Se houver foco na ideia de que tenho um determinado número de alunos que já estão com um número determinado de notas vermelhas, tenho de conversar entre os pares, com os professores e coordenador.

A lenta implementação do novo ensino médio é um dos limitadores para esse salto?

Henriques: Lógico, a gente está atrasado, o ritmo está lento. Uma limitação forte é que ainda não saiu o edital do PNDL [Programa Nacional do Livro e do Material Didático ] para o livro do ensino médio que supostamente deveria estar na escola em 2021. Eu lhe diria que é impossível, mesmo que o edital seja publicado em outubro, ter um livro para 2021 que efetivamente trabalhe por áreas de conhecimento de forma integrada, e não só uma justaposição de matérias. Já perdemos a janela de 2021 mesmo que o edital saia agora.





E qual é a importância do livro didático nesse processo?

Henriques: O PNLD condiciona a prova do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], por exemplo. Para que o rabo não abane mais o cachorro, preciso ter um base referencial [Base Nacional Comum Curricular, referência para os novos currículos]. Porque aí estruturo meus sistemas avaliativos, tanto a do Saeb [prova para estudantes da educação básica que forma a nota do Ideb] como a do Enem, em função da expectativa de aprendizagem que eu tenho. Hoje não é assim. Eu faço a prova e o professor ensina o que a prova está dizendo. Se eu disser “tenho que ensinar isso e a expectativa é que se aprenda isso”, eu faço a prova e o cachorro passa a abanar o rabo. Mas, se eu fizer tudo isso e não tiver material didático estruturado, concretamente é quase impossível.

Além do livro didático, qual é o papel do MEC?

Henriques: Isso é a mesma coisa com a política nacional. Se o MEC dá uma diretriz errática, fica muito mais difícil fazer. É óbvio que as autonomias das esferas fazem uma certa proteção. Agora, o ideal é ter essa dinâmica mais harmônica, entre níveis, com todos sintonizados com o desenvolvimento pleno do estudante.

Há sinais de melhora?

Henriques: Há sinais nessa direção em Ceará, Espírito Santo e Piauí. Parece que Minas Gerais também tem. Se a gente entender isso e começar a praticar, o movimento lá para frente e que vai permitir a dar saltos mais rápidos é um movimento que começa a mudar cultura. Se a gente captar um movimento de cultura numa rede ou escola, temos de começar a fazer trocas virtuosas entre elas. A mudança de chave que a gente não fez nos anos 1970, e que também não fez após a Constituição de 1988, apesar de todas as melhoras, é sobretudo uma mudança de cultura.

O sr. pode explicar um pouco melhor isso?

Henriques: Isso envolve o campo da gestão, que não resolve tudo, e também as práticas pedagógicas. Mas tem, sobretudo, relação com o princípio de ter altas expectativas e garantir equidade numa sociedade que não tem hábito de falar com todos.  É preciso falar para todos em uma sociedade que pôde fazer o arranjo perverso do milagre econômico, que foi: “eu vivo com 30% da população [bem educada]”. Na sociedade do conhecimento, esse projeto não só do ponto de vista moral e de valores de cidadania, mas do ponto de vista da funcionalidade não fica mais de pé. Se o Brasil não fizer essa mudança de cultura, vai ficar na segunda liga do mundo. Não vamos disputar a sociedade do conhecimento, vamos abandonar o desafio e disputar outra coisa.

A renovação do Fundeb preocupa? A proposta veio da Economia, e não do MEC...

Henriques: Não é natural que a [proposta do novo Fundeb] tenha partido do Ministério da Economia. Além disso, a discussão está muito lenta para uma lei que vence no ano que vem.

Fonte: Valor Econômico